Corpo Elétrico
Corpo Elétrico (2017), de Marcelo Caetano
De equivocado, Corpo Elétrico tem talvez o título: os corpos do filme de Marcelo Caetano parecem antes contaminados por uma certa letargia, um vagar que retira deles um sentido de ação propriamente ativo. O filme quer se colocar no ritmo da vida de seus personagens, num cotidiano se encerra entre a casa e o trabalho, mas que vê ressurgir, nesse itinerário, pequenos momentos efêmeros de fuga, pequenos rearranjos que não exatamente escapam ao dia a dia, mas que o reinventam sem dele sair. No passo dessa mesma retidão cotidiana, a própria energia sexual será sempre no filme algo latente, que ressurge aqui e ali sem alterar drasticamente o rumo das coisas. E esse rumo gravita, por sua vez, em torno de um centro específico: a vida no trabalho.
O filme lida com dois grandes assuntos contemporâneos. De um lado, o mundo do trabalho, em particular a sobreposição entre as relações profissionais e afetivas; de outro, o “mundo gay”. Se há um mérito aqui, ele está justamente em não se pensar esse dois temas como hemisférios separados, mas em sobrepô-los: o universo gay não é entendido como nicho, mas como algo pulverizado, que se mistura ao mundo em sua faceta mais ordinária e comum, a do trabalho. O mundo do trabalho, por sua própria natureza, cria uma heterogeneidade forçada que o filme, longe de desdenhar, interpreta como uma espécie de uma utopia da igualdade proletária em que gays e crentes, homens e mulheres, migrantes e imigrantes convivem, se apoiam e dão particularidade ao que do contrário seriam puras relações profissionais cinzas.
A ideia aqui é portanto aquele da “firma”. Um grupo de colegas de uma pequena fábrica têxtil se vê às voltas com o aumento do trabalho para atender às demandas de fim de ano e com as confraternizações típicas do período: Natal na copinha, boteco pós-expediente, festinha, futebol, churrasco. Essa festividade e essa promiscuidade das relações profissionais e afetivas — “tipicamente brasileiras”, diriam alguns — tem, como se sabe, um efeito duplo: ela é tanto o que ameniza um cotidiano desumanizado quanto o que nos aprisiona, nos impede de sair desse mesmo cotidiano. Corpo Elétrico se coloca diante dessa ambiguidade. No entanto, felizmente, não se apressa em impor uma conclusão sobre o assunto. O tom não é nem condenatório, nem de celebração dessa festividade como “salvação” da opressão cotidiana. O afeto no trabalho é apenas uma reorganização provisória, contingente: “uma vez que estamos aqui, juntos, por que não transformar a convivência em camaradagem?”. Sem elaborar nenhuma teoria para mediar a relação com aquele universo, o filme se concentra em conviver com os personagens, em desenvolver empatia por eles.
O filme tira sua maior energia dos momentos recreativos, de escape, nas festas, danças ou na deliciosa algazarra no ônibus. Talvez porque seja nesses momentos que os personagens podem enfim se liberar para ser eles mesmos, indivíduos particulares para além das relações sociais que representam. Nesse sentido, o filme se apoia numa dicotomia implícita, fruto de uma visão relativamente tradicional do trabalho (não à toa o espaço aqui é aquele da fábrica), na qual o ambiente de trabalho é visto como lugar de cerceamento do “eu”, em busca de uma eficiência desumanizada (cf. o discurso repugnante do patrão e a checagem das bolsas), ao passo que é no escape dessa repressão que o “eu” pode se expressar, numa dança, num flerte ou aproximação mal sucedida, na liberação da energia numa festa. Dizemos “tradicional” porque, embora o filme seja bastante atual de maneira geral, hoje capital e subjetividade não mais apenas se sobrepõem e se tensionam, como o filme dá a ver, mas se fundiram completamente na figura, contemporânea por excelência, do workaholic, o eu-para-o-trabalho. Nesse quadro, a subjetividade não mais se opõe ao trabalho e se expressa fora dele, tampouco o trabalho se afigura, de saída, como ambiente impessoal, mas opera justamente incorporando a subjetividade e o particular à sua própria economia do lucro. Corpo Elétrico está um pé atrás dessa discussão. Mas isso são outros quinhentos.
Na pequena fábrica do filme, Elias (Kelner Macêdo) funciona como uma espécie de mediador. Discreto em seus anseios e desejos, ele é o personagem mais “neutro” do filme. Pertence também a uma classe ligeiramente superior à dos demais personagens. Elias é, assim, o mediador possível: cabe a ele guiar o espectador, de uma classe média presumida, pelo universo do filme. Consciente ou não da parte do filme, essa operação talvez espelhe a própria relação da direção com os personagens, e nesse sentido podemos nos perguntar em que medida essa presença de um mediador “neutro” não é uma forma de amortecer o nosso encontro com os outros personagens do filme, de uma classe mais baixa. Dito de outra forma, supomos que, para o cinema brasileiro de festivais atual, um imigrante da Guiné-Bissau ou uma transexual ainda sejam demasiado “outros”, e tenhamos que nos contentar com um homossexual discreto, conciliador, positivo.
Corpo Elétrico é mais uma nota num certo cinema brasileiro recente que tira sua força mais da convivência com os personagens do que de articulações dramáticas e narrativas mais amplas. Há nele qualquer coisa que o aproxima de filmes a princípio muito distantes como A Vizinhança do Tigre, Riscado, Ela Volta na Quinta, em cujo essencial reside na abertura ao particular e no encontro com o outro (ficcional ou não) numa dimensão cotidiana. O desvio pelo universo artístico do travestismo de Corpo Elétrico é exemplar dessa tentativa de abertura ao “particular-documental”. O que é curioso é que, desses filmes, o de Marcelo Caetano seja ao mesmo tempo o mais estritamente ficcional, o mais “construído”, e o mais reto. As sequências são blocos autônomos, e o roteiro prefere investir em relações latentes, quase como se tivesse medo de forçar o painel de personagens cuidadosamente construído. No limite, é como se o filme sonhasse em ser um documentário sobre personagens de ficção: ele faz assim o caminho inverso dos outros filmes, que ficcionalizam a partir de uma base documental (ou quase). Em Corpo Elétrico, como a ficção é um dado de saída, ela se torna envergonhada, retraída.
Essa estrutura “reta”, se por um lado permite ao filme um respiro que o aproxima do referido panorama de obras que misturam realidade e ficção, por outro, impõe também seus próprios limites, impedindo o filme de ir além da mera descrição do cotidiano. Resta por fim o plano de Elias boiando no mar, imagem da inércia, menos uma conclusão do que uma renúncia da parte do roteiro, uma interrupção do fluxo cotidiano do filme.
Calac Nogueira
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