Corra!
O Triunfo Da Mensagem
Por Wellington Sari
Diversas sitcoms dos anos 80 adotavam a prática de inserir no meio de uma temporada episódios duplos “especiais”, que tinham como função propor a discussão de um assunto sério. Não raro, um dos atores da série, expressão solene, postura grave, aparecia encarando a câmera, antes da abertura, anunciando que aquilo que viria a seguir deveria ser debatido por toda a família. Um dos infames exemplares da prática aparece em Diff´ent Strokes, em que o episódio The Bicycle Man, transmitido em 1983, trata de pedofilia. Sem limar da banda sonora a claque, o programa tem como único objetivo ensinar sobre os métodos dos abusadores.
Jordan Peele, comediante de TV, enquadra-se na faixa-etária do público-alvo de Diff´ent Strokes, quando exibido orginalmente, o que permite supor com grande probabilidade de acerto que o ator/diretor é familiarizado com a série e com os “episódios especiais”. Corra!, cuja arte de divulgação ostenta o “escrito e dirigido por” dos autores estabelecidos, deixa claro logo de saída, antes mesmo que se veja o filme, que a relação maior do filme é com a TV, não com o cinema – afinal, é na telinha onde Peele fez seu nome; Corra! é seu primeiro longa. Quando se fala que o melhor do cinema, hoje, está na televisão, que a dramaturgia televisiva vive a era de ouro, talvez queira se dizer que há uma espécie de inversão de valores: agora é o cinema quem produz “episódios especiais”, com função sócio educativa, enquanto a TV vende reproduções em miniatura do que o cinema hollywoodiano já foi. Há quem se contente com elas, assim como há quem colecione selos.
O trunfo diabólico do “episódio especial” é o de sair com a partida ganha: a qualidade de produto imperdível, que gera polêmica e que promove boa ação, vem brilhando na embalagem. E o mais importante: o produto sequer precisa ser visto para que seu valor seja amplamente reconhecido, discutido e inserido e na prateleira reservada às antologias daquele determinado ano (lembrando que quem é muito afoito por falar do hoje corre o risco de virar jornal de ontem bem rápido). Peele e a Blumhouse simplesmente transferem o estratagema do “episódio especial” para Corra!, cujo brilhantismo, genialidade e inegável conhecimento da profissão são pungentes. Falo, claro, do departamento de publicidade do longa-metragem, que consegue vender um panfleto sócio-educativo como se fosse O Caso dos Dez Negrinhos. O golpe publicitário é, esse sim, verdadeiramente antológico: o produto é vendido como autoral, misterioso e surpreendente, ao mesmo tempo que deixa absolutamente claro sobre os temas importantes de que vai tratar e, mais do que isso, salienta enfaticamente o quão importante são tais temas nos dias de hoje. Quem é que vai dizer que as questões raciais não devem ser discutidas?
E qual a participação do filme em si, nesse grande aparato sócio-publicitário? É plena, já que Peele de fato faz um objeto de entretenimento em que os artifícios do “episódio especial” e de tudo aquilo que se associa à dramaturgia televisiva de baixa qualidade são empregados despudoradamente: personagens falam sozinhos a todo momento, o “efeito Holmes” é abundante – técnica que cuidadosamente faz o espectador sentir-se inteligente ao propiciar que, por meio da exposição pontual de certos elementos da trama, consiga adivinhar o que vai acontecer imediatamente a seguir na tela, algo que materializa o comportamento bastante primitivo que as plateias em geral mantém com os filmes, avisando em voz alta o protagonista sobre os perigos, ou declamando obviedades que, mais tarde, serão reforçadas pelos próprios personagens, como no momento em que a Predadora Branca, de sobrenome Armitage, um trocadilho com heritage (tradição Branca! herança branca!), que toma Leite Branco vestindo Suéter Branco de Gola Rulê Branca anuncia a identidade secreta de um dos membros da família – e, como se não fosse o suficiente, a própria televisão serve como mecanismo para explicar de modo o mais didático possível aquilo que seria o aspecto surpreendente da trama. Hipnotizado diante da telinha, Chris ouve, como se ouvisse o anúncio solene de voz empostada antes do início de The Bicycle Man, todos os detalhes sobre o que está sendo mostrado, tanto na telinha da tv quanto no filme em si. Mais do que o controle remoto, o acessório fundamental para a TV é o ouvido.
A falta de imaginação é condição para qualquer tipo de panfletagem – existem frases mais óbvias do que palavras de ordem? – e um filme de horror como Corra!, por mais que lance mão de um ou outro artifício do gênero, como os sustos sonoros, que seria o equivalente à claque em The Bicycle Man (visto no mudo, Corra! pareceria tão inofensivo quanto um episódio de Um Maluco no Pedaço), tem compromissos firmados com a mensagem e nada mais. O filme de horror é sempre um combate ao mal, essa entidade de várias faces cujo grande trunfo é o de ser misterioso, dúbio, uma vez que vive às sombras e seus contornos são de difícil delineação (não é essa a questão, o racismo velado, que Corra! quer dicutir?). Cineastas como Wes Craven e John Carpenter pensaram diferentes estratégias para cercar o mal e traçar a linha fronteiriça que o separa do bem (eis o motivo para o travelling em Carpenter) ou utilizar os sonhos e as imagens vagabundas para cruzar essas mesmas fronteiras e derrotar o mal em seu próprio território escuro (Craven, evidentemente).
A missão de Peele é bem mais pobre e mundana, o que significa dizer que o cineasta lida com o que já se sabe e com o que já é dado, mesmo no que se refere aos signos de suspense (o assunto herança branca e televisão vem a calhar no momento em que retorna à TV Twin Peaks, série de que Corra! compartilha inúmeros motivos visuais e temas, como a apropriação, por parte dos brancos, de uma herança cultural antiga, a possessão de corpos por espíritos ou mentes de outras etnias, as transições para espaços do subconsciente materializados em lugares com nome e geografia definida, a excentricidade cômica do mal etc; a diferença é que o compromisso de Lynch se dá com as próprias entranhas da televisão e das imagens que a povoam, além do senso brincalhão daqueles que sabem que a graça está nas perguntas, não nas respostas). Todo passo dado em direção ao desconhecido é prontamente iluminado pelo holofote da “questão”, da “baita crítica social” que, justamente, só fala do óbvio, daquilo que, bem, já está sob os holofotes de qualquer maneira. Assim o espaço das sombras, que é por onde o cineasta deveria realmente caminhar, torna-se ainda mais escuro – quanto maior o holofote, maior a área de sombra gerada.
O compromisso de Peele é com o imediato, o pequeno, o passageiro, o seguro, como na TV (que hoje atende também por outros nomes, tal Netflix). Não é um acaso a escolha do diretor para representar o estado de subconsciência em que Chris é colocado pela hipnose: um lugar escuro com uma tela retangular, que vai se tornando pequenininha, pequenininha, até parecer uma TV de 30 polegadas. Imagens restritas à sua gaiolinha, mensagem passada, tema discutido, negros tendo sua vingança violenta contra os brancos usurpadores, espectador conscientizado, tudo bastante conservador. Mas, e o depois, quando outro tema de importância tiver surgido e os comentários de Facebook pulsarem por assuntos distintos – The Bicycle Man, hoje, só tem importância nas páginas de trivia sobre televisão – o que terá sobrado? A TV é um convite à estagnação, à hipnose, à domesticação. A fuga proposta por Corra!, paradoxalmente, limita-se ao conforto da sala de estar.
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