Ano VII

Parceiros da Noite – Wood

sexta-feira fev 24, 2017

parceiros

Parceiros da Noite[1]

Por Robin Wood

Para se fazer alguma justiça a Parceiros da Noite (já que não lhe foi feita nenhuma, até então)[2], é necessário colocá-lo sob dois contextos: a repentina emergência de filmes preocupados, tanto centralmente quanto perifericamente, com a homossexualidade, os quais emergiram no final dos anos 1970; e as questões sociais levantadas pelo movimento de libertação gay, o programa teórico por ele implicado.

“Emergiram” talvez não seja exatamente a palavra: dos quatro filmes mais relevantes, um ainda nem foi lançado e outro já afundou, sem deixar um traço sequer. Ainda assim, o fato dos filmes terem sido feitos atesta uma certa consciência (ainda que confusa e hostil) de que que o movimenta gay estava lá, de alguma forma, e impunha algum tipo de ameaça. A existência desses filmes demarca um ponto a partir do qual os gays não podem mais serem representados sub-repticiamente, sem excessiva referência à sexualidade, seja como decoradores de interior para alívio cômico, seja como um capanga de olhar furtivo de filme noir. E apesar de ter vindo muito tardiamente, penso que o reconhecimento da homossexualidade pertence, claramente, aos anos 1970, tendo os reacionários anos 1980 demarcarado, até então, um feliz retorno do desmiolado e clandestino (como em A Música Não Pode Parar), como se nada tivesse acontecido[3].

O principal interesse de New York After Midnight[4] (tirando o fato de que ele foi co-roteirizado por Louise Rose e de que tentadores ecos temáticos de Irmãs Diabólicas  podem ser pinçados por dentre suas ruínas) reside no seu notável insight sociológico de que se uma mulher entrar numa balada gay, os homens vão parar, imediatamente, de dançar e tentarão estupra-la. Como o filme possivelmente nunca vai chegar ao público, melhor não falar mais nada. Maldita Paixão – no qual Elizabeth Ashley acredita que se ela pagar um homem para estuprar Talia Shire, esta será convertida, instantaneamente, ao lesbianismo e retribuirá sua paixão não-correspondida – reproduz, gratuitamente, o familiar estereótipo de lésbicas como doentes e predadoras. Tão poucas pessoas foram assisti-lo que o seu impacto social é negligenciável, sendo apenas triste que uma atriz inteligente (Elizabeth Ashley) consentiu em aparecer nele.

O filme chave aqui (tirando Parceiros da Noite) é um no qual a homossexualidade aparece de forma periférica, sendo a homofobia do filme tão silenciosa que passou largamente sem ser notada (com a honrosa exceção feita a Stuart Byron, no Village Voice). Ainda assim, a homofobia é central em Gigolô Americano. Estava sendo exibido sem protestos, no mesmo complexo de salas de cinema de Toronto no qual ativistas gays estavam boicotando Parceiros da Noite. Acho-o o mais incomparavelmente ofensivo dos dois filmes e argumentaria que seu efeito social é, provavelmente, mais danoso, sendo encoberto e insidioso (somando-se ao fato do sucesso comercial do filme). Todo o progresso do protagonista, Julian (Richard Gere), é pressuposto na simples identificação entre homossexualidade e degradação. A Julian, o gigolô do título, é dado o status de Herói Existencial porque ele tem orgulho em levar mulheres de meia-idade frustradas ao orgasmo (pela devida recompensa monetária). Ele está tentando esquecer um passado, quando costumava “envolver-se com bichas”, e é ameaçado com a obrigação de retornar a ele, coagido por um cafetão-criminoso negro e homossexual. Como supõe-se que Julian não obtém prazer de suas experiências sexuais com mulheres mais velhas, mas gosta de dar-lhes prazer, assim como de ser pago, a implicação é que se presume que “bichas” nem mesmo merecem prazer. O filme traça o progresso de Julian em direção à salvação na forma de uma relação heterossexual, vista sob um verdadeiro sentimentalismo fascista (e plágio direto de Bresson) como elevada e redentora. O fato de o último vilão de Schrader ser tanto negro quanto homossexual dificilmente pode ser visto, no contexto geral de sua obra, como uma coincidência.

Hollywood adotou, de alguma forma, diferentes estratégias ao lidar com – e ao colocar em seu lugar patriarcal – o movimento das mulheres e o movimento gay. Num nível surpreendente, arranjou-se para que ambos fossem ignorados (nunca são reconhecidos enquanto movimentos, exceto pejorativamente). Seus métodos para com o feminismo têm sido admitir generosamente que, sim, uma mulher tem todo o direito de ser independente e autônoma, antes de sugerir que ela será capaz, então, de usar sua liberdade de escolha para se comprometer com um barbudo, corpulento e patriarcal, como Kris Kristofferson ou Alan Bates. Com o movimento gay, no contexto de uma cultura homofóbica de uma forma geral, pode-se tranquilamente lançar mão da simples vilanização.

Em contradição a tudo isso, e apontando para uma discussão de Parceiros da Noite, pode-se sugerir, rapidamente, as questões que se esperaria ver sendo contempladas num filme contemporâneo sobre a homossexualidade:

  1. 1. A opressão/exploração dos gays em nossa cultura
  2. 2. A repressão da bissexualidade, um lugar-comum da teoria psicanalítica. Aqui, a bissexualidade é apontada como o estado natural da criança “polimorficamente perversa”, de quem a construção social/ideológica (correspondendo às normas aceitas de masculinidade e feminilidade, um aspecto central da “repressão em excesso” dentro de nossa cultura) envolve a negação sistemática de seus impulsos homossexuais naturais. O fracasso desse processo de socialização resulta na homossexualidade, exclusivamente – a partir do qual pode-se aceita-la, logicamente, portanto, como uma perversão, visto que essa descrição é aceita, também, para a heterossexualidade exclusiva. Isso leva ao
  3. 3. Reconhecimento de que a homossexualidade não é algo à parte, de que todo mundo é potencialmente gay ou tem potenciais inclinações gays; e também à
  4. 4. Homofobia: o ódio irracional aos homossexuais. A teoria da repressão da bissexualidade oferece a única explicação plausível desse infeliz desajuste: o que é reprimido não é destruído, mas continua a existir no inconsciente como uma ameaça constante. O que o homofóbico odeia é o gay dentro de si.
  5. 5. O assalto ao patriarcado e à “Lei do Pai”, com o macho heterossexual como a figura ideologicamente privilegiada de nossa cultura.
  6. 6. A crítica das relações heterossexuais sob o patriarcado (como baseadas na desigualdade e dominação, i.e. a subordinação da mulher): a família, monogamia, amor romântico.
  7. 7. Tentativas de se construir novas formas de se relacionar, logo, necessariamente novas formas de organização social.
  8. 8. A necessidade de se projetarem imagens fortes e positivas da vida gay, para contrabalancear a homofobia predominante.
  9. 9. O reconhecimento da libertação gay como um movimento político subversivo, com teorias, objetivos e princípios definidos.
  10. 10. A estreita conexão entre a libertação gay e o movimento das mulheres.

Ativistas gays se manifestaram contra Parceiros da Noite em todas as etapas, tentando interromper as filmagens e atacando-o na imprensa gay. Em termos de impacto social imediato, eles podem estar bem certos (e em todo caso, a campanha contra o filme, após o seu lançamento, envolvendo o boicote de cinemas e a distribuição de folhetos, é exemplar em sugerir, dentro de uma sociedade democrática, uma alternativa construtiva à censura). Ainda assim, Parceiro da Noite levanta (não necessariamente de um ponto de vista positivo) os primeiros seis pontos acima citados, como devo demonstrar. De resto, dentro do cinema comercial internacional, apenas Um dia muito especial, de Ettore Scola, aborda o último, e os outros três ainda têm de ser levantados, ou até mesmo insinuados. Uma comparação útil se dá com A Consequência, um filme alemão amplamente enxergado, por ativistas gays, como “positivo”, o qual só levanta o primeiro dos meus dez pontos e procede em trabalha-lo para muito além do ponto de exagero num tom de auto-piedade lamuriosa, ao mesmo tempo em que reforça, entusiasticamente, os bons e velhos valores heterossexuais da monogamia romântica, colocando o seu par de amantes gays – idealizado e amaldiçoado – num mundo de heterossexuais caracterizados como puramente maus, manipuladores e vingativos. Devo argumentar que a negatividade de Parceiros da Noite oferece muito mais que pode vir a ser usado: que o que quer que seja que ele tenha intencionado (o que permanece, para mim, muito misterioso), o filme de William Friedkin é, de longe, o mais radical e subversivo dos dois.

1. Num nível, a incoerência de Parceiros da Noite é de uma ordem diferente daquela de Taxi Driver e À Procura de Mr. Goodbar: sua superfície é, deliberadamente, fraturada; o progresso da narrativa, obscuro, de forma que se deve reconhece-lo como extremamente audacioso dentro do contexto de Hollywood (ainda que não artisticamente bem-sucedido, necessariamente). Num certo respeito, de fato, ele apresenta sua narrativa como estritamente impossível, oferecendo proposições cinematográficas que não são apenas contraditórias, mas mutualmente excludentes. Acho muito difícil de se ter certeza do que Friedkin tinha em mente aqui – a se julgar pelo nível de sofisticação no qual o filme procura operar. No estilo, ele é tão pouco “brechtiano” quanto se possa imaginar, ainda que pareça querer que seus espectadores questionem a experiência “realista” da própria narrativa. Pode-se começar pelo final

a) Quem cometeu o último assassinato (o esfaqueamento brutal de Ted Bailey/Don Scardino, o mais simpático de todos os personagens gays do filme)? Friedkin torna isso impossível de se saber, enquanto que no romance de Gerald Walker está perfeitamente claro. Há sinais muito fortes de que seja o protagonista, Steve Burns (Al Pacino), o policial que assumira a identidade do assassino que ele perseguira, e o qual está continuando a destruição, do assassino, de homens gays que o excitam sexualmente (o olhar final de Pacino, no espelho; o enfático “Jesus Cristo!” do detetive Edelson, ao saber que Burns era vizinho da vítima). Ainda assim, o filme não oferece nenhuma evidência para essa assumpção, e, de fato, oferece sugestões contrárias, de que Ted possa ter sido assassinado pelo seu amante (visto, pela última vez, brandindo uma faca idêntica à arma do assassinato).

b) Mas quem cometeu todos os outros assassinatos? O filme culmina num confronto e numa prisão (jogados num meticuloso estilo doppelgänger entre policial e suspeito). O “assassino” nega, em seu leito hospitalar, que ele já tenha matado alguém. A única evidência legal são suas digitais numa moeda, certificadas por Edelson – mesmo apresentado como mais humano e preocupado do que a maioria de seus colegas – o qual já havia se mostrado longe da perfeição e que está sob grande pressão para produzir um assassino ou perder o seu emprego. Existe também uma indiscutível peça de evidência cinematográfica – mas é precisamente aí que a impossibilidade narrativa entra. Nós vemos o assassino, Richards (Richard Cox), adentrando o parque para falar com o seu pai, numa sequência extremamente sugerida como “fantasia” pela superexposição (ficamos sabendo, depois, que o pai havia morrido dez anos atrás); durante essa conversa, Friedkin insere flashbacks de “memórias” dos dois primeiros assassinatos mostrados no filme, aos quais apenas o assassino poderia ter acesso. Não restariam dúvidas, portanto, de que Stuart Richards é o assassino – exceto pelo fato de que o assassino, na primeira cena de flerte/assassinato é feito claramente por um ator diferente. Se um ponto central na narrativa é provado como impossível, então, presumivelmente todo o filme perde sua intimidação “realista”: tudo se torna uma questão de “se”, “talvez”, “vamos fingir”, ao invés de “isso foi o que aconteceu”.

c) O filme não sugere que Burns poderia ser o responsável por todos os assassinatos, mas claramente o relaciona com mais do que o último. Depois do assassino do designer de roupar no cinema pornô, Friedkin corta direto para Burns chegando em casa, abatido, perturbado e cansado – como se ele tivesse acabado de praticar o assassinato. Quando ele confronta o seu doppelgänger no parque, no clímax, ele repete o ritual da canção infantil que precede cada assassinato (obviamente um jogo de pai e filho): “Quem está aí? Eu estou aqui…”. O único jeito de que ele possivelmente pudesse saber disso é a partir do deturpado relato da travesti, a qual relata (para outro policial) como algo que uma amiga sua entreouviu – excetuando-se o fato de que a travesti cita de forma equivocada e que Burns acerta.

O filme sugere, então, que: há, pelo menos, dois assassinos e que poderia haver vários; que nós não precisamos achar que sabemos quem é o assassino, porque poderia ser qualquer um; e que a culpa pela violência deve ser posta na sociedade, não no indivíduo. Uma das principais queixas dos ativistas gays tem sido que o filme associa a violência especificamente com a cultura homossexual e mostra, ambas, como algo contagioso (“a teoria vampírica do contágio homossexual”, como Robin Hardy afirma em Body Politic[5]). É bem possível que essa seja a impressão geral que o filme deixa na audiência de uma forma geral, a imagética da violência e da indumentária de couro sendo tão insistentes. Não é, contudo, o que o filme diz de fato ou, certamente, não é tudo o que ele diz.

2. O segmento inicial de Parceiros da Noite (depois do prólogo, mostrando a descoberta de um braço semidecomposto no rio) retoma, sucintamente, o tema da cidade excremental de Taxi Driver e parece aplica-lo, especificamente, à subcultura homossexual: “São todos uns vagabundos”, diz um policial num carro de patrulha, introduzindo o plano ponto-de-vista de uma rua à noite povoada apenas por gays flertando. Essa simples visão, a qual tipifica, presumivelmente, o tipo de coisa contra a qual os ativistas gays estavam protestando, é moldada de forma muito acentuada por três fatos. Primeiro, ao policial em questão são dados inquestionáveis significantes (aparência física, expressão, linguagem corporal, entonação) indicando “Essa é uma pessoa desagradável, tensa e potencialmente violenta”. Segundo, alguns segundos depois ele já está obrigando uma travesti a chupa-lo. Terceiro, seu companheiro de patrulha estava, há pouco, se gabando de uma briga com sua esposa, num tom de “Eu vou pegar aquela vagabunda” – a primeira intimação da violência no filme se estabelece dentro do contexto de uma relação heterossexual “normal”, com fortes conotações de dominação patriarcal e brutalidade, antes de qualquer gay ter aparecido.

Essa introdução estabelece, concisamente, o tema da permutabilidade entre a força policial e os bares de indumentária de couro – a extensão mais compreensiva do motivo do doppelgänger no filme. Quando a travesti protesta para o detetive Edelson (Paul Sorvino) contra a exploração pelo patrulheiro, Edelson pergunta, meio cinicamente, “Como você sabia que eles eram policiais?”. É claramente a sua saída e estabelece a sua cumplicidade no padrão de exploração/corrupção do filme. Ainda, na sequência, é dada a essa afirmação uma certa força irônica, quando somos levados para dentro de um bar sadomasoquista no qual toda a clientela está trajando uniformes policiais. (A ironia se torna particularmente complexa quando Burns é acusado, pelo proprietário, de ser um policial e acaba sendo recusado – porque ele está sem uniforme). Mais adiante, o policial casado do início (ou – dado os jogos narrativos realizados por Friedkin – seu duplo, feito por outro ator) aparece mais duas vezes no contexto da subcultura gay, flertando com Burns uma vez num bar (onde ele é quase justaposto com Stuart Richards) e uma vez no Central park. (Ele também está a cargo da investigação sobre o assassinato final, antes de Edelson assumir). O filme nunca explica isso: não podemos imaginar que nas cenas de flerte ele é outro policial disfarçado, porque o policial disfarçado tem de ter o tipo física e a aparência feral de Al Pacino. Finalmente, a cena grotesca na qual tanto Burns quanto o suspeito inocente são espancados na delegacia de policial por um imenso policial negro, vestido apenas com um chapéu de caubói e um protetor genital, tem apenas a mais vaga plausibilidade narrativa e parece estar lá, primeiramente, para sublinhar a conexão entre os dois mundos.

Tudo isso afeta, certamente, nossa leitura do desenvolvimento de Steve Burns no de fato ou potencial assassino de Ted Bailey: sim, ele pode ser visto como que brutalizado pela sua experiência na subcultura sadomasoquista, mas da mesma forma sua brutalização pode ser atribuída à contaminação pelo trabalho policial. Tanto a cultura dominante quanto a subcultura são reveladas como constituídas sob e fatalmente corrompidas por relações de poder.

Os dois momentos no filme nos quais a imagética parece relacionar, de forma mais insistente, a violência com o comportamento homossexual, são ambos especificamente preocupados com a dominação: o assassinato do designer de roupas no cinema pornô, culminando com o jorro de sangue sobre as imagens de um ato de amor homossexual na tela; a crescentemente frenética intercalação de Burns se jogando na pista de dança com outro homem, e progressivamente gostando, com a) um homem sendo fistado publicamente b) a distante figura de um carrasco com máscara de couro. O filme claramente apresenta a pornografia (dominação através da objetificação) e a fistação em público em termos degradantes (uma visão a qual não tenho nenhuma grande vontade de confrontar). Se daí sejamos levados a enxergar a curtição de Burns, na pista de dança da boate gay, sob a mesma luz, parece-me incerto. Às imagens, podem ser dadas esse sentido, ainda que a montagem carregue ambiguidades inerentes (comparação ou contraste? – “atração” ou “colisão”?). A alternativa é ler a cena não como um ataque nos malefícios de se dançar numa boate gay, mas como um reconhecimento da contaminação de tudo em nossa cultura (até mesmo de uma dança agradável) pelo sentido de dominação/subjeção. Se Burns assumira, ao final do filme, a identidade do assassino homofóbico, essa cena (o surgimento, nele, do desejo homossexual) se torna, então, crucial.

3. O filme não apresenta nenhuma imagem positiva da cultura gay, mas não oferece, então, nenhuma alternativa positiva, de nenhuma espécie, à sociedade corrupta e em desintegração, a qual retrata – certamente nenhum retorno a qualquer possível “normalidade” tradicional, o qual (na medida em que é até insinuado) tomaria a forma de um policial dizendo para sua esposa “Vou pegar aquela vagabunda”. Um filme retratando a acolhida, a generosidade e a abertura que encontrei no mundo gay – qualidades vitalmente conectadas à liberdade sexual, à parcial derrocada, dentro da cultura gay, da síndrome de possessão/dominação/submissão – ainda está para ser feito. Apenas a admissão, por parte do filme, de um pouco dessa dimensão, poderia ter resolvido o nó de contradições de Parceiros da Noite. Em sua ausência, deveriam ser notados dois aspectos (admitidamente subordinados) que de alguma forma mitigam a sugestão geral da subcultura das indumentárias de couro como epítome de uma cultura de dominação e violência, inerentemente sadomasoquista. Um deles é que, com exceção do amante de Ted Bailey, todos os personagens individuais gays (os suspeitos e as vítimas, incluindo o próprio Ted) são apresentados de uma forma um tanto quanto simpática, sem nenhuma indicação de que devemos ficar chocados com a sua orientação sexual. (Por outro lado, o romance a partir do qual o filme foi adaptado mal consegue disfarçar seu desprezo pelos homossexuais: sua tese de que a única coisa mais repugnante do que um homossexual, é uma pessoa que odeia homossexuais, enreda o seu autor em alguns nós um tanto quanto inextricáveis). O outro surge do uso, por parte de Friedkin, dos figurantes gays nas cenas do bar, na busca de uma autenticidade, muitos dos quais aparecem irrepreensivelmente felizes e enérgicos, especialmente em contraste com a cara abatida de Al Pacino: podemos nos perguntar como, se isso é o inferno, tantas pessoas parecem estar se divertindo tanto, ali.

4. O assunto da homofobia está no coração temático do filme, em sua revelação dos motivos pelos quais os assassinatos estão sendo cometidos. Se sua obscuridade narrativa tem o efeito de remover a culpa de qualquer assassino individual, isso assim se dá a fim de melhor defini-lo no nível temático. Stuart Richards é levado a cometer (acredita que é levado) a cometer os assassinatos por um pai que o teria, de outra forma, desprezado: os assassinatos são sua forma de provar a si mesmo o “homem” que se pai gostaria que ele fosse. Ao assassinar gays, isso é, ele está simbolicamente destruindo o gay dentro dele mesmo “em nome do Pai” – um pai há muito tempo morto, interiorizado como superego. Assumindo que Stuart é o assassino o tempo todo (o que o filme afirma e nega), pode-se traçar uma progressão lógica através dos assassinatos: a primeira vítima da qual ficamos sabendo era um professor de Stuart, da Universidade de Columbia (psicologicamente, um particular agravo na combinação das figuras do pai e do objeto/sedutor sexual); a segunda é o ator (o primeiro assassinato mostrado no filme), a única vítima com a qual sabemos que o assassino manteve relações sexuais; daí em diante, presumivelmente, a excitação sem performance é o suficiente para disparar o mecanismo. Mais a frente, todas as vítimas (além de Burns, além de vários figurantes, incluindo o clone de Al Pacino que reaparece mais umas duas vezes nas cenas do bar) todas as vítimas são o duplo de Stuart – i.e., as encarnações tangíveis de seu gay interior: os assassinatos são as projeções de uma violência interna dirigida contra ele mesmo. De alguma forma, explicitamente, mas mais por implicação, o vilão real do filme é revelado como a dominação patriarcal, a “Lei do Pai” que exige a rígida estruturação do sujeito e a repressão de todas as realidades supérfluas e conflitantes – a negação do Outro, tanto o interno quanto externo. As implicações disso são enormes: tomado de forma simbólica, foi o pai de Stuart que exigiu a Guerra do Vietnã. Suas exigências (e suas impossibilidades) são encarnadas na brutalidade e corrupção da polícia, e parodiadas no sadomasoquismo nos bares de indumentárias de couro. É um paradoxo notável que um filme quase que universalmente tido como anti-gay possa produzir, em seu centro, um dos insights sociais/psicoanalíticos fundamentais a partir do qual se sustenta a luta pela libertação gay. (Para uma comparação com um filme indubitavelmente anti-gay, comparar com o holandês Dear Boys, de Paul de Lussanet, o qual apresenta todos os seus personagens gays como predadores mal-intencionados).

5. Resta a ser levado em conta, ainda, o desenvolvimento do personagem de Al Pacino, seu relacionamento com sua amante, Nancy (Karen Allen), e o final extremamente enigmático do filme. É aqui que Parceiros da Noite aparece, em seu máximo, tateante e evasivo: incerto do que quer dizer (o que ousa dizer?), se encaminha para uma espécie de neutralidade paralisada. Para começar, quase já no final, se assumirmos que Burns matou Ted Bailey, a única motivação possível é uma extensão da homofobia pretérita do assassino. O filme parece deliberadamente evasivo quanto ao fato de Burns realmente transar com os homens no cumprimento de seus afazeres, mas é claro quanto ao fato de que sua confiança em sua heterossexualidade se torna, progressivamente, minada, e a possibilidade de que uma relação sexual com Bailey pode ocorrer é fortemente sugerida: ele assassina Bailey porque se sente sexualmente excitado por ele. Olhando para trás, a partir disso, podemos traçar a fragilização de sua identidade sexual patriarcal, seu envolvimento na subcultura contraposto, sistematicamente, com cenas mostrando a deterioração de sua relação com Nancy, sua performance sexual vacilando entre a agressão (compensatória ou sádica?) e a passividade. Parte do problema de se ler o filme é que não é dada nenhuma definição clara ao relacionamento no início. Ele certamente não recebe nenhuma carga positiva, com ambos os personagens parecendo fisicamente pálidos e drenados de suas energias (a energia preenche o “submundo” do couro). Nancy permanece, até o final do filme, uma figural sem cor e neutra, sem posição definida para além daquela de oferecer suporte intelectual a Burns.

Como ler a cena final? Com a missão oficialmente encerrada (mas com o assassinato de Bailey não resolvido, como pano de fundo imediato), Burns havia pedido para voltar com ela e está se barbeando no banheiro (simbolicamente, limpando a si próprio?). Ele corta a garganta, seu rosto continua a parecer abatido e perturbado. Enquanto isso, Nancy acha o uniforme da SS, o qual ele havia usado nos bares de indumentária de couro, jogado numa cadeira e, automaticamente, veste-o. Corta para o rosto de Burns no espelho. Nós (e ele) ouvimos o tilintar do metal se aproximando do banheiro. Dissolução suave da sua cara para o rio e para os barcos-cargueiros – o filme percorreu um circulo completo até às suas imagens de abertura, implicando na descoberta de outro cadáver ou membro amputado? Pode-se ler isso de duas formas (de novo, jogando o jogo do “talvez” do filme): agora, irremediavelmente perturbado, Burns está prestes a matar Nancy, quando ele a vê vestida em couro; o corpo dela será encontrado no rio. Ou, menos especificamente, apesar de um assassino ter sido pego, isso não resolve nada: enquanto a cultura continuar como ela é, os padrões de violência vão continuar se espalhando por todos os lados. O que é interessante é que é Nancy quem veste o uniforme: a teoria do “contágio” é tensionada a um ponto em que temos que assumir que ela contraiu, agora, a “doença” de Burns. Ao invés disso, parece lógico em assumir o final como uma resposta às palavras do policial acerca de sua mulher, lá no início. Torna-se, então, um lembrete de que o sadomasoquismo, longe de ser privilégio de homossexuais trajando couro, perpassa toda a cultura e é inerente aos seus padrões fundamentais de relação (pais-filhos, marido-esposa), todas as quais são centradas na dominação/submissão: Nancy está simplesmente revertendo o papel de macho/fêmea tradicional e se tornando a dominadora.

Poderia se acusar Friedkin de não ter captado as implicações positivas e radicais da libertação gay (mas como ele poderia, dado a acachapante supressão das vozes gays dentro da cultura dominante?): ele usa a cultura gay para exemplificar relações de dominação, enquanto que, no melhor dos casos, essas transcendem aquelas. (Até mesmo o sadomasoquismo gay parece carregar, geralmente, fortes conotações de jogo e paródia – i.e, transforma os padrões tradicionais de dominação/submissão em um jogo, com os papéis, frequentemente, intercambiáveis). Ele não confrontou, ainda, o fato de que a desigualdade central em nossa cultura é aquela entre homens e mulheres e que as relações entre o mesmo sexo oferecem, ao menos, a possibilidade de se fugir disso. Ainda assim, a confusão de Parceiros da Noite me parece infinitamente preferível ao romantismo autoindulgente de A Consequência ou ao auto-desprezo de Dear Boys.



[1] WOOD, Robin. From Vietnam to Regan… and Beyond. New York: Columbia University Press, 2003. (pp. 52-61). Traduzimos aqui um pequeno trecho pertencente ao quarto capítulo do livro (intitulado “O texto incoerente: Narrativa nos anos 1970”), no qual o autor dedica um segmento a Parceiros da Noite (1980), de William Friedkin. [N.T]

[2] Desde que esse artigo foi escrito, em 1980, descobri duas críticas de Parceiros da Noite, escritas independentemente e por volta da mesma época, publicadas na revista australiana Cinema Papers, de outubro-novembro de 1980. As críticas – de Tom Ryan e Adrian Martin – confirmam, substancialmente, minhas próprias descobertas, ao mesmo tempo em que acrescentam interessantes insights próprios.

[3] Filmes subsequentes da década de 80, sobre temáticas gay, lançados após esse artigo ter sido originalmente escrito (1980), são tratados no capítulo II. Eles melhoram um pouco, mas não contradizem seriamente o relato aqui oferecido.

[4] O autor refere-se ao filme de 1978, também conhecido como Monique ou Flashing Lights, dirigido por Jacques Scandelari. [N.T]

[5] Proeminente revista mensal canadense de temática LGBT. Foi publicada entre 1971 e 1987. [N.T]

(Traduzido do inglês por Guilherme Savioli)

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