Ano VII

La La Land

sexta-feira fev 24, 2017

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La la Land (2016), de Damien Chazelle

La La Land foi recebido com posições antagônicas e exageradas. Para alguns, a obra-prima que recoloca os musicais no centro do cinema hollywoodiano novamente, impregnando de paz e alegria espíritos atormentados pela realidade cada vez mais assustadora, genuíno merecedor de 14 indicações ao Oscar (para deixar claro que desta vez surge um filme realmente forte, maior que Chicago ou O Artista, que não eram merecedores de tal distinção). Para outros, o filme bobinho, escapista, cheio de clichês (normalmente apontados e lamentados por quem adora filmes cheio de clichês e escreve textos cheios de clichês, sem se dar conta disso). Excesso de boa vontade de um lado, má vontade clara de outro. Serei, sem querer, do contra: minha posição em relação ao filme é ponderada, sem morrer de amor, sem desprezo algum, mas entendendo, e em alguns casos lamentando, o porquê de um ou outro. O filme , aliás, tem sido tolamente condenado por ser escapista numa época de engajamento político, sem que se leve em conta que esse suposto engajamento, quando não pensado artisticamente, levando em conta a inteligência do espectador, e não sua consciência culpada, torna-se apenas um panfleto, muito distante do que pode ser entendido como arte, muito longe de um verdadeiro engajamento. Sobre La La Land, todos parecem ter uma opinião embasada e definitiva, formulada do alto da sabedoria dos usuários de redes sociais, esses oráculos dos tempos de pensamentos institucionalizados.

Danem-se as 14 indicações e o babado todo. Há muito tempo o Oscar não é uma premiação séria (nunca foi, mas até os anos 70 tínhamos indicados mais fortes, fazendo a brincadeira ser pelo menos mais instrutiva). Quem não gosta de musicais deve compreensivelmente ficar fora da festa, pois La La Land não vai angariar novos fãs para o gênero (e por que deveria?), e os minutos iniciais com aquela coreografia no congestionamento lembra propaganda da C&A (depois a coisa engrena um pouco). Os demais podem relaxar e curtir um bom filme, cheio de tropeços, mas com certa magia, certo sinal de que Hollywood ainda pode ser a fábrica dos sonhos de outrora, ainda que num nível muito mais modesto.

Musical à moda antiga não é a melhor maneira de se referir a La La Land, apesar dos vários sinais de nostalgia que contaminam o filme. Melhor falar em atualização do musical clássico hollywoodiano, incorporando diferentes vertentes revisionistas, coisa feita provavelmente por cinéfilo imberbe, mas apaixonado. É na linha Vincente Minnelli/Stanley Donen/MGM que Chazelle tenta se inserir, e são sensíveis os respingos de Jacques Demy e Jacques Rivette, dos backstage musicals dos anos 30 (de Lloyd Bacon ou Mervyn Leroy), do maneirismo de Coppola em O Fundo do Coração e de Todos Dizem Eu Te Amo, o musical que Woody Allen realizou em Los Angeles nos anos 90, e Amores Parisienses, do grande Alain Resnais. Esse caldeirão faz com que o filme seja demasiadamente derivativo, ainda mais porque, francamente, La La Land está muito abaixo de todos os citados acima. Mas desprezá-lo por isso seria ignorar os diversos momentos em que a poesia brota do inesperado – não nos números musicais em sua maioria, porque neles há certa poesia a priori, algo sempre incômodo, mas nas trocas de olhar entre Emma Stone e Ryan Gosling, nas observações sobre o fim das coisas boas (voltarei a isso), no jogo com as músicas (“I Ran”, do Flock of Seagulls, sendo pedida como um desafio para uma banda cover de tecno-pop – apesar da resposta dançante de Mia ser ridícula, um desses momentos em que o filme desce a ladeira).

Minnelli, de fato, é presença forte, uma vez que a estrutura, sobretudo no último terço, repete a de Sinfonia de Paris: um delírio em forma de número musical próximo ao final nos dá cenas de como teria sido a relação do casal se por algum motivo a reação de Seb fosse outra, quando esbarra em Mia lá no início do filme, pouco após ter sido demitido de um bar pelo personagem de J.K.Simmons (como em Whiplash, o homem duro e intransigente). Esse momento, algo como Smoking/No Smoking (de novo Resnais), consegue atingir um pico que o filme nunca tinha atingido, fazendo com que ele termine de forma francamente positiva (não me espantaria de descobrir que muitas opiniões entusiasmadas tenham se devido a esse momento em especial). Esse é de fato o momento mais belo de La La Land, o momento que une todos nós, românticos, sonhadores, apaixonados, melancólicos pelo que poderia ter acontecido, aqueles que por algum instante na vida olham para trás e pensam que tudo poderia ter sido diferente, para melhor (fazer isso pode ser prejudicial a uma visão prática e objetiva de mundo, mas suspeito que quem não faz isso de vez em quando tem algum cadeado no coração ou está muito próximo de ser uma máquina). É também um momento que provoca a entrada de um outro filme no caldeirão de referências: New York New York, de Martin Scorsese, que muito claramente homenageia Sinfonia de Paris, e com Liza Minnelli, filha de Vincente Minnelli com Judy Garland.

Talvez seja esse, afinal, o encanto do filme. Ele captura, de algum modo, todos os que já se apaixonaram, todos que já viveram amor intenso, todos os que já tiveram músicas temas de romances particulares. E captura bem, porque vai se insinuando aos poucos, como no “Bolero” de Ravel, um crescendo de emoções que cada vez mais procuram justificar, nem sempre com sucesso, a aceleração incontrolável da câmera de Damien Chazelle (essa aceleração não acompanha o crescendo, uma vez que está lá desde o início, com raros momentos de bem-vinda calmaria).

Para esse crescendo funcionar, precisamos acreditar minimamente que Emma Stone é Mia, a garçonete aspirante a atriz, e que Ryan Gosling é Sebastian, músico de jazz que luta para não ver seu estilo musical preferido desaparecer na malha de crossovers e diluições (que ele próprio alimenta por algum tempo). Então podemos dizer que o filme é escapista até a quinta página, uma vez que existe, nesse comentário sobre o fim das coisas boas, ou o possível fim, uma crítica à padronização dessas mesmas coisas, dos costumes urbanos que se tornam sofisticados de modo esnobe (a popular e asquerosa gourmetização de tudo), das manifestações artísticas que se submetem cada vez mais às fórmulas de consumo imediato (como aquela banda absurda para a qual Seb, envergonhadamente, vai trabalhar). Isso pode ser conservador, claro, mas ser conservador não é necessariamente negativo. É lutar para que algo de bom seja conservado. Os diretores da nouvelle vague francesa conservavam em seus filmes muitas coisas que eles gostavam dentro da história do cinema. E assim se dá com qualquer movimento artístico revolucionário, sempre com uma pitada de conservação. Para o conservador Seb, que se incomoda que um templo do jazz vire um lugar de sambas e tapas (sim, ele adverte para a mistura das culturas, especialidade da cidade dos anjos), não é tanto o surgimento de algo que ele detesta o problema, mas o desaparecimento de algo que ele ama. E ele vai lutar para que não desapareça, sem se preocupar em destruir o que ele não gosta. Isso é ruim? Só para os cínicos e demagogos. Seb e Mia são nostálgicos. Ele ouve fitas cassetes no carro vintage, ela tem um poster retrô da Ingrid Bergman no quarto e outros posters de filmes antigos, e aprende com ele a gostar de jazz. Feitos um para o outro, sim, e para a celebração de um passado específico que para eles não deve morrer.

Emma Stone está no grande momento de sua carreira. Um momento que começou, talvez, com Birdman, em que ela brilha mais que o carismático Michael Keaton, e continuou com Magia ao Luar, um dos melhores Allens deste século. Ryan Gosling parece ter passado um pouco de seu momento áureo. Na primeira meia hora, é muito difícil acreditar que Seb sinta algo genuíno por Mia (isso só acontece quando percebemos que ele a acompanha até o carro dela, estacionado longe da festa, quando o carro dele estava bem no começo da caminhada). Ainda assim, esperamos que a qualquer momento ele fará alguma besteira (também com relação à sua errática carreira musical). Por isso temos alguma surpresa com o desenrolar desse romance. Só não é surpresa que depois do auge, do novo verão do amor, venha a queda, o outono de uma relação. Um dos vários malefícios do digital, por sinal, é a tradução dos escritos do filme sem que o original seja mantido. Quando visto no cinema, o espectador atento deve esperar que na descrição das estações, que começam com o inverno, a quarta seria o outono, e que esse outono seria representado por sua manifestação mais coloquial em inglês, que é, justamente, FALL (e que quer dizer queda). A partir dessa estação, fica patente que o romance não tem mais como continuar, pela própria configuração profissional em que os dois estão. Mas esse comentário feito pela estrutura do filme não é perceptível ao espectador que não conhece a língua inglesa. As estações comandam de certo modo o que os personagens são. No inverno (começo e fim do filme), eles se trombam e se afastam. Nas outras estações eles vivem bem, culminando com o verão, o auge do relacionamento.

Por tudo isso, penso que, se La La Land tem sido inflado descuidadamente por entusiastas de todas as horas, também não deveria ser descartado com tanta facilidade. Se faz pouco pela história do cinema e do musical, com apenas uma música digna de sua história, “City of Stars”, ao menos compensa, logo no início, com o alargamento da tela para o cinemascope e o surgimento gradual das cores vibrantes que emulam o tecnicolor (uma deixa de que vai falar superficialmente de uma espécie de evolução do musical hollywoodiano), o que Xavier Dolan fez no execrável Mommy – a tela sendo alargada pelo personagem num instante de felicidade, mais um plano abjeto do cinema desta década. Se é tolinho em diversos momentos (as quatro amigas dançando parecem uma versão piorada de algum número musical dos Backyardigans, Seb tocando a contragosto e mudando para o que quer tocar lembra uma diluição de “I Love to Singa”, obra-prima animada de Tex Avery), tem também seu lado pertinente, de observação de um mundo cada vez mais uniformizado, de uma crítica ao público que quer ouvir sempre as mesmas coisas e aceita de bom grado tudo que é empurrado pelo esquema de jabás e premiações (paradoxal, sim, que um filme assim esteja prestes a papar alguns oscars). Além disso, existe uma espécie de lei da compensação que faz com que filmes assim, com bons e maus momentos, sejam amados ou odiados sem meios termos. Quando isso acontece, normalmente sinto que as opiniões tendem a ser condicionadas por um excesso de expectativas, o que nos distancia perigosamente do exercício crítico.

Sérgio Alpendre

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