Ano VII

A máscara (do outro): Jade

sexta-feira fev 24, 2017

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A máscara (do outro):  Jade, de William Friedkin

Por Wellington Sari

Friedkin parte quase sempre da literatura. Usar, então, sinais de pontuação como analogia visual vem bem a calhar: no cinema de Friedkin reina o parêntesis. Há algo em parêntesis nos seus filmes, uma informação ou um traço de personalidade estocado pelos limites do corpo e que, de alguma forma, não pertencem com naturalidade ao contexto. Existe um demônio interior, um eterno desconforto que angustia o peito dos personagens e lhes anuvia o olhar – David Caruso mantém esse olhar durante toda projeção de Jade e, como esquecer a encarada que Al Pacino desfere, por meio do espelho, ao espectador em Parceiros da Noite? Vejamos: Reagan (Pazuzu), Burns (bicho assassino ou uma bicha), Camilla (druida), em A Árvore da Maldição, Trina Gavin (puta), em Jade, o policial Joe (psicopata) em Killer Joe – Matador de Aluguel; ou, ainda, o procurador vivido por Michael Biehn em Síndrome do Mal (liberal com gana de enviar um psicopata para a sentença de morte). O parêntesis é o alter-ego, é aquilo que é quase inserido na fluidez do viver desses personagens. É a perturbação, que o gosto de Friedkin pelo insert beirando o subliminar – imagens que duram pouco mais de uma dezena de frames e tomam de assalto a tela, um raio, um nasgo de penetração peniana, uma máscara de fertilidade camaronesa – traduz tão bem. O cinema de Friedkin é uma casa de janelas fechadas, em que uma ou outra porta bate no meio da madrugada, sabe-se Deus como.

Jade, escrito por Joe Eszterhas – um gênio ou uma besta? -  é quase, ele mesmo, um insert de Instinto Selvagem, um filme que carrega dentro de si outro filme. Lá está o detetive um tanto apatetado, a mulher poderosa, as colinas de São Francisco, o sexo como ritual de poder, os carrões. Linda Fiorentino e Sharon Stone, morena e loira, a vadia assassina dentro da escritora, perseguida pela psicótica psicóloga, a psicóloga escondendo uma alter-ego de vadia. Os filmes se misturam, agitam-se, lutam para irromper à superfície. Ainda assim, a mise-en-scène prevalece, corpo que encerra os demônios internos – até mesmo o do autoplágio de um roteirista medíocre – com solidez.

Friedkin é o cineasta do medo, do medo do outro. O demônio em O Exorcista é um vírus do oriente médio, é a peste provinda do deserto hediondo onde se sua muito, fala-se língua milenar obscura, o sol é um corpo celeste gigantesco a ocupar toda a tela de cinema, quase um diabo de fogo a quem estranhas criaturas dedicam medonhas preces. É o sincretismo religioso que abocanha a fé de padres fraquejantes, é o inimigo que se infiltra por dentro e promove o terror com a aberração da normalidade – a cabeça girando 360°! -, é a fonte de toda sorte de obscenidades. Em Parceiros da Noite os inferninhos gays, mostrados em descritivas panorâmicas que se repetem cena a cena, denunciam um submundo de corpos emaranhados, impossíveis formas, uma bunda de ponta cabeça, uma boca na altura da cintura em composições à Hieronymus Bosch, condenadas, espécie de Sísifo de couro e tarrachinhas, a se movimentar infinitamente ao som do pub rock quase onipresente na banda sonora; Al Pacino, olhão arregalado, corpo em espasmo, dançando na pista, o espelho devolvendo a imagem de um sujeito amaldiçoado, que viu o que não queria ver, que experimentou o que não queria experimentar. A nojeira white trash em Killer Joe é a Aberração USA, a américa que virou dejeto, frango frito sendo chupado de joelhos, Monster Truck sem roda na TV, lolitinha de 12 anos, cabeça fraca e bundinha empinada, é a costura do blazer comprado no bazar da Salvation Army que se desfaz no passe de mágica dos dedos gordurosos que puxam o fiozinho querendo escapar na altura do ombro. No filme de 1995 escrito por Eszterhas, Friedkin retoma boa parte da imagética do O Exorcista, substituindo a possessão entre quatro paredes pela felação.

Jade é um thriller em que batuca um terror étnico, cheio de ritualística, ideogramas chineses, máscaras de fertilidade camaronesas: putaria tribal em plena São Francisco. Assim como em O Exorcista, esse outro primitivo promove a contaminação do espaço urbano, civilizado. Ao som de uma trilha com vários elementos étnicos – que poderia estar em qualquer filme hollywoodiano sobre a Guerra do Vietnã, e qualquer filme hollywoodiano sobre a Guerra do Vietnã é sobre os monstros da floresta – o longa começa com a câmera avançando sobre o ideograma, pintado de branco, que dá título à obra e se dissolve em densa neblina. Neblina inebriante, que envolve a casa de estilo neoclássico, onde um violento crime está prestes a acontecer. A câmera adentra a casa e, em um passeio pelos corredores, começa a nos mostrar objetos de arte – de uma coleção de bonecas chinesas, um tilt nos leva a um quadro de Rafael – e, na medida em que a steady cam começa a se aproximar do quarto, local em que está a vítima prestes a ser executada, aumenta a quantidade de obras étnicas expostas. Uma delas, máscara de ébano posicionada no alto de uma escada, é utilizada claramente como elemento de horror por Friedkin, que faz a câmera percorrer lentamente a esquina de um corredor, até chegar ao pé da escadaria.

A subida da câmera em direção à máscara é acompanhada pela subida da música na banda sonora. No quarto ao lado do cômodo em que ocorre o assassinato, mais arte primitiva pendurada na parede.  Em Friedkin, essa iconografia que se poderia chamar “exótica” quase sempre está conectada à perversão e à bestialidade, como se esses amuletos, ferramentas para rituais desconhecidos e objetos de artesanato repletos de superstição anciã fossem, em verdade, condutores da própria perversão e bestialidade. A casa neoclássica, só com Rafael nas paredes, estaria sã em salva. Mas, o sangue escorre por debaixo da porta e, o personagem de Caruso, quando visualiza a cena do crime – um corpo mascarado preso à parede, como em exibição – não tem dúvidas sobre o caráter ritualístico do caso (embora o detetive, ao final, não consiga resolver o quebra-cabeças, mesmo acreditando no contrário; quebra-cabeças que mostra uma imagem comum na filmografia de Friedkin: o assassino não pertence originalmente ao universo de horror, não é um “outro” e sim foi possuído de alguma maneira por ele).

Linda Fiorentino não é Sharon Stone, Michele Pfeiffer, Katleen Turner, Kim Novak – mulheres que exalam na tela o cheiro da cama, do edredom, da toalha molhada do banho pós-sexo. A linha entre bem e mal, vulgaridade e elegância, em Friedkin, é predominantemente um sfumato. Falando sempre em tom baixo, numa voz quente e controlada, Fiorentino é muito mais fêmea do que fatal. Sentada na cadeira em quarto de hotel, nua, lânguida, vista em plongèe, venerada até por Deus, Fiorentino poderia muito bem ser a madona de Rafael, antes do quadro dividir parede com máscaras africanas e bonecas chinesas. Friedkin tem como missão dramatúrgica mostra-la ainda pura no início do filme, para que as reviravoltas adiante sejam compensatórias. Entretanto, esse não é o único motivo – é o mais irrisório, inclusive. O sfumato, os contornos nebulosos, que se misturam uns nos outros, estimula o diretor em maior grau: o quanto de Jade, a puta que satisfaz o desejo de homens poderosos, que enlouquece o governador é mostrado em Trina, a psicóloga?

Ao mesmo tempo em que sua imagem na tela resplandeça sexualidade – como no plongèe mencionado acima – a qualidade daquilo que vemos nunca resvala no vagabundo, no sórdido.  Seria até possível dizer que Friedkin encontra meios de combinar a sutiliza do sfumato com a pungência do insert na encenação, como na cena em que Corelli, o personagem de Caruso, conversa com Gavin, marido de Trina e lhe apresenta suspeitas em relação à mulher. No plano geral, Gavin está de costas para a câmera e Corelli, situado em oposição, discutem sobre a violência do crime cometido na casa neoclássica. Enquanto falam sobre Trina/Jade, o retrato dela, posicionado no canto do quadro, encara o espectador com um sorriso insuspeito. Um dos segredos de Friedkin é esse: só existe dubiedade quando se mostra, ao invés de se esconder; a moralidade aflora no visto, não no sugerido. Em um filme que exibe Rafael nos primeiros minutos seria mesmo preciso encontrar uma maneira de mostrar o insert de modo mais harmônico. E por falar em maneira e Rafael, fica difícil não pensar na postura maneirista de se retrabalhar composições dos grandes mestres com inventividade autoconsciente – Rafael é um dos maiores na composição de trios; no trio de Fridkin, um dos elementos é substituído por uma foto, imagem dentro de imagem. E se os maneiristas sempre demonstraram gosto por máscaras (A Alegoria com Vênus e o Cupido, de Bronzino, quadro preenchido por enigmas, abaixo) e por personagens cuja textura do rosto, dura, fixa, lembram as máscaras, em uma espécie de declaração de superficialidade, que escondem em mistérios propositadamente insolúveus suas personalidades, Jade, com a abundância de disfarces, em ébano africano ou porcelana chinesa, alter-egos e sangue fluorescente, mostra-se como o enigma maneirista – único na filmografia – de Friedkin.  Vale lembrar: o enigma que é o outro, o horror que surge do desconhecido, só é efetivo quando mostrado. Da superfície, algo vai irromper, seja por razão da jornada pelo qual o personagem vai adentrar, seja pelo demônio interior, o parêntesis, que vai exibir em algum momento o reflexo de seu ser.

 

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A descida de Corelli ao submundo do sexo e poder, de chantagem política e assassinato é gradual e segue o ritmo do thriller erótico (um gênero mais feito de preliminares do que penetração), mas quando uma perseguição brutal de carro termina presa em uma festa de rua em Chinatown, sabemos que o filme chega a um tipo de clímax. Não a um clímax de narrativa, pois ainda estamos na metade do longa e sim o clímax da ideia de contaminação vista lá no início. Nada é tão estranho, nada se configura em maior empecilho à normalidade do que interromper uma sequência de perseguição de carros em uma obra dirigida por William Friedkin. O diretor, ao fazê-lo, ao preencher o espaço urbano não com carretas e trilhos suspensos, mas com carros alegóricos, dragões, balões vermelhos e ideogramas indecifráveis que não podem ser quebrados, destruídos, como as poderosas carretas da cidade próxima (Viver e Morrer em Los Angeles), nos mostra que tem autoconsciência efetivamente mais aguçada que a do roteirista, um vedete da opacidade.  Corelli está preso no inferno e quando sai de lá também já não é mais ou mesmo. Não há encarada no espelho, como em Parceiros na Noite, há olhos nos olhos com Trina, agora já suspeita de crime, que, sentada no colo de Carolli, uma mão na nuca dele, outra no cinto, diz que nada mudou (tiveram um breve romance no passado). Só que tudo mudou, Corelli e Trina, o sangue escorrendo debaixo da porta. Friedkin, um dos grandes encenadores com portas do cinema, gosta de bulir o segredo diabólico no quarto, às escondidas, até ele ser expelido: é o sangue do pecado aqui – o morto, lembremos, fazia parte do mundo de Jade – é o padre Kerras voando através do vidro da janela, em 1973 (os inserts quase subliminares, recorrentes, são o prenuncio dessa expelida, coelho colocando a cabecinha para fora da toca, perturbação querendo irromper o parêntesis).

A secura do cinema de Friedkin, que aqui começa a se radicalizar nas transições entre sequências, abruptas, nada acadêmicas – o diretor não é entusiasta do aborrecido expediente de situar o espectador com um plano geral na mudança de locações; Friedkin gosta de cortar de uma escala de planos para outra muito similar, quando passa para a próxima sequência – conecta-se com essa vontade da convulsão que ameaça sua obra. Há sempre uma dubiedade, porém. Quando o longa, já próximo do fim, mostra uma série de planos com Jade absolutamente entregue e dominada transando com um desconhecido, podemos acreditar por um momento que o parêntesis foi rompido, a perturbação interna foi expelida. Só que por heroísmo ou fraqueza –  retorna a memória do padre Kerras – a linha de corte volta a se esfumaçar, a neblina retorna a envolver as intenções, a máscara é vestida outra vez: jamais saberemos o que será de Jade, se retornará ao quarto ou se espatifará nas escadas (por que não estender esta dúvida, apropriadamente dentro de um parêntesis, até o derradeiro filme de Friedkin, na derradeira cena de Killer Joe – Matador de Aluguel: Dottie terá puxado o gatilho e se tornado ela também uma assassina?).

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