Cavalo de Turim
Cavalo de Turim (A Torinói Ló, 2011), de Béla Tarr
Entendo o cineasta húngaro Béla Tarr como um dos maiores herdeiros de Andrei Tarkovski. Herdeiro também do cinema novo húngaro dos anos 60 (de diretores como Miklos Jancsó, Istvan Gaal e András Kovacs). Sua carreira chegou à plenitude de seu estilo com Danação (1988), e se consolidou definitivamente com a obra-prima Satantango (1994).
Por isso foi um acontecimento o lançamento, ainda que tardio, de seu último longa, O Cavalo de Turim (2011), no circuito comercial paulistano, no início de 2016. Na ocasião, fiz um texto altamente elogioso para a Folha de S.Paulo, texto que serve de base para este (o que justifica o tom mais aberto, destinado a um público mais amplo), dizendo que não importava o atraso e que o filme merecia ser visto de joelhos. Mantenho o que disse na época, e digo, novamente, agora num outro sentido: não importa o atraso na redação e publicação deste texto, uma vez que a Interlúdio não se pauta necessariamente pelos acontecimentos mais superficiais do cinema (lançamentos comerciais de filmes e festivais), ainda que se abra a coberturas do tipo sempre que possível. A questão é que a revista não faz disso uma razão de sua existência, e um filme de 2011 pode tanto ser comentado hoje quanto no ano passado, como poderia gerar um texto daqui a dois anos, ou um mesmo texto agora, de outro redator.
Voltemos a O Cavalo de Turim. No início, é narrada, com a tela em negro, a história pela qual passou o filósofo alemão Nietzsche em Turim. Num passeio, o filósofo se apiedou de um cavalo que estava sendo maltratado pelo dono, entrando em surto desde então e até sua morte, dez anos depois. Logo depois desse episódio narrado de modo soturno, vemos um cavalo conduzindo um homem numa carroça, com a câmera gravitando ao redor dessa ação. É um plano de quatro minutos e meio, executado com uma música solene ao fundo, que nos faz entrar no mundo cinematográfico construído cuidadosamente pelo cineasta. Um mundo de tempos lentos, densidade narrativa, personagens mudos e taciturnos em um preto e branco assombroso.
Talvez seja bom explicar que Béla Tarr, como Tarkovski e Kenji Mizoguchi, é antes de tudo um cineasta do plano. Ou seja, dessa unidade pertencente a uma cena e localizada entre dois cortes. Se num filme comercial um plano geralmente dura entre dois e dez segundos, os planos de Bela Tarr costumam ultrapassar um minuto, e por vezes têm muito mais que isso. Consequentemente, cada plano é muito bem pensado e realizado.
Em O Cavalo de Turim, temos um homem, o dono do cavalo, que mora com sua filha numa casa isolada. Eles vivem quase sem contato com a humanidade, e parecem esperar alguma coisa. Dias melhores? A escuridão eterna? O apocalipse? Essas perguntas permanecerão em aberto. O que pode nos arrebatar é a crueza e o desespero expostos em planos escuros, calmos (a contradição com a palavra “desespero” usado anteriormente é apenas aparente), monocromáticos, de pai e filha amassando batatas, esquentando água, ajeitando coisas meio que sem saber por quê, meio no automático.
Não é o tipo de filme que entrega soluções dramatúrgicas convencionais para apaziguar nossos corações. Também não é o tipo de filme que se resume a uma radicalização do tempo esculpido tarkovskiano ou da modulação mizoguchiana. Tais referências são só o ponto de partida para algo mais denso, que muitos podem rejeitar por sentir pesado demais. O espectador verá que a resposta que o filme entrega, se é que podemos assim chamar o que ele entrega, é coerente com o cinema sempre instigante e reflexivo de Béla Tarr. E com a informação de que este longa, infelizmente, é sua despedida do cinema.
Sérgio Alpendre
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