Ano VII

O ignorante

sexta-feira fev 24, 2017

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O Ignorante (Le Cancre, 2016), de Paul Vecchiali

Ao escrever sobre Corrida sem fim (Two-Lane Blacktop) de Monte Hellman, em 1973 na Revue du cinèma, Paul Vecchiali definiu o filme de modo certeiro em sua síntese crítica como “sem a dramaturgia escolar de bom tom, com uma pureza de forma, uma maturidade na observação, uma inteligência sensível aos pormenores inteiramente exemplar” *. Não surpreende deparar-se com O ignorante, assim como seus últimos trabalhos, como um alcance resultado de uma lapidação extensa em uma obra que nos remete à década da obra prima de Hellman, em filmes como L’étrangleur (1970) e Change pas de main (1975) – que em sua potência cênica continham uma urgência que firmaria não somente Vecchiali como também Jean-Claude Guiguet como uma geração importante no cinema francês e ainda recebida de maneira extremamente lacunar no Brasil – e que no atual cenário reflete em toda sua força a inteligência sensível aos pormenores como defendeu o então crítico naqueles anos. Nada mais coerente e rigoroso com aquilo que realiza hoje.

Rodolphe, protagonista de O ignorante interpretado por Paul Vecchiali não é um homem de nobres realizações na vida. É um senhor que em seus últimos anos reencontra uma série de mulheres que passaram pela sua trajetória, assim como o filho Laurent que jamais conheceu profundamente. Longe de um olhar severo, ou de uma elegia arrependida acerca do fim da vida, Vecchiali olha honestamente para os instantes de humanidade nas interações filmadas. A espera pela beleza do mundo é sentida no homem que observa o vento tocar nas árvores e em pequenos momentos de palavras simples ditas de maneira dispersa em diálogos a princípio incipientes.

A graça de O ignorante se faz sentir no movimento calmo e impassível realizado pelo diretor em observar suas personagens com olhos que atravessam as delimitações do quadro. O rigor, aqui, se caracteriza justamente por aquilo que não se notaria em uma construção restrita de olhar, que prezaria pela perfeição arquitetônica da cena sem permissões para que o mundo filmado se deixe invadir por um espaço vazio, pelo extra campo. O traço de Vecchiali é delineado justamente do movimento constante de se observar atentamente seu redor e seu espaço com a leveza de se deixar penetrar pela beleza daquilo que se filma. Não somente um ambiente externo que se faça sentir, mas também um olhar sincero, um movimento de corpos realocados pela organização cênica, um instante em que o “vazio” preenche o quadro após a saída das personagens – uma câmera que não subjuga aquilo que filma.

Um dos momentos mais encantadores do filme se traduz quando uma das ex mulheres de Rodolphe convida seu filho para dançar na sala da casa. A câmera observa a dança. Um corte e uma aproximação ao rosto do protagonista revelam uma expressão de fascínio quase inconsciente, como uma descoberta do belo em um momento a princípio trivial de divertimento cotidiano. Logo após, em uma pequena elipse temporal, essa mesma mulher é filmada morta, deitada com uma expressão serena em uma espécie de velório pessoal em que Rodolphe e seu filho a observam.

A atitude resignada do protagonista perante a morte que se aproxima, após finalmente ir ao encontro de Marguerite (seu grande amor e espécie de obsessão em sua vida), não se confunde com um enfrentamento formal que passa muito longe de uma possível resignação do realizador. O ignorante não se ergue como um canto do cisne sombrio, como acerto de contas ou carregado por um peso aterrador da proximidade do fim. Pelo contrário, procura, em sua abordagem não condescendente, a beleza na simplicidade humana das relações, e realiza um retrospecto amoroso de seu protagonista em uma progressão que termina na morte pacífica frente ao mar em um dia ensolarado. O plano final, puramente cinematográfico, traduz um movimento interno materializado na expressão do rosto de Laurent que vai do choque primeiro à aceitação e serenidade frente ao falecimento de um pai extremamente problemático, lacunar, mas sobretudo humano.

O ignorante é mais uma prova de que o cinema de Vecchiali hoje se constrói através de uma via muito pessoal, muito distante de um sentimento contemporâneo tomado pelo excesso e pelos olhares enviesados de um cinismo que a muito assola as produções ditas “de arte”. Um cinema possível, que busca atingir um limite em seu universo cênico, a que se deva olhar atentamente como um necessário caminho nas últimas décadas, preocupado com a rigorosa observação do mundo e com o olhar sincero de quem conhece muito bem os próprios procedimentos para levar sua construção a uma importante extremidade no atual cenário. Um cinema cujo tema central vivido em tela perpassa uma lente através da qual reside um problema traduzido sobretudo em caráter cinematográfico – uma postura de resistência.

Rafael Dornellas

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* Paul Vecchiali, Revue du cinéma n° 276/277, outubro 1973. Traduzido por Bruno Andrade, FOCO-Revista de Cinema, 2011.

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