Elle: Uma mulher partida ao meio
Elle: uma mulher partida ao meio
Por Gabriela Amaral Almeida
Elle (2016), de Paul Verhoeven: fui sugada para o interior (escuro) de uma personagem, como uma Alice caindo num buraco rumo a um País das Maravilhas às avessas. O filme lida basicamente com a descoberta do desejo de uma mulher cujo pai, psicopata e assassino serial, é o detonador de seu processo dissociativo brutal, ainda na infância. Michelle (ou simplesmente Elle) precisa aprender a separar o sentir do agir após testemunhar as atrocidades perpetradas pelo pai – e de ser involuntariamente sua cúmplice, em seu ato final de psicose. Figura conhecida na França, o pai encarcerado de Elle acompanha toda a sua vida, até a idade adulta, como a sombra de um guarda-sol de circunferência descomunal. Elle vive sob a sombra de uma maldição contra a qual luta dia após dia: a herança maldita da loucura, da brutalidade, da desumanidade.
Logo no início do filme, Elle é estuprada por um invasor mascarado, um ato violento que ela tenta apagar com o agir controlado de alguém totalmente dissociado do sentir: jogar as roupas fora, tomar um banho, fazer exame de sangue para checar DSTs e compartilhar a notícia com amigos próximos, como se fosse a coisa mais banal do mundo (num jantar: “Eu fui estuprada, por favor, passe a salada”). Em paralelo, Elle segue no comando de sua vida: é dona de uma empresa de videogames de conteúdo absolutamente misógino (mulheres semi-nuas, homens musculosos e cenários medievais), a voz mais forte numa equipe de criadores homens, que não têm outra alternativa senão obedecer às suas ordens. She’s the boss.
O que se discute, no filme, é a necessidade do sentir num personagem marcado pelo distanciamento de si, de seus próprios sentimentos. O estupro não deflagra em Elle o desejo, mas aguça a sua imaginação notadamente violenta (vide cena em que se imagina esmagando a cabeça do violador com um objeto; um momento gore que nos revela a maneira como aquele personagem processa, emocionalmente, o que aconteceu). O que realmente deflagra o desejo da personagem é a descoberta da identidade do estuprador. A partir daí, tem início o perigosíssimo jogo de violência-e-morte em que Elle se coloca como sujeito. Cabe aqui ressaltar que a personagem sempre – repetindo: sempre – se coloca como sujeito de seu desejo, ainda que este envolva violência e pulsão de morte.
É, portanto, Elle quem dá as cartas do jogo sadomasoquista que se desenha contratriamente à sua figura social: de mulher independente, dona de si e inquebrantável. Estamos no complexo terreno do desejo, no qual Elle se coloca como submissa em um jogo de encenação violento. A questão entra na zona cinza da definição “do que um personagem quer”: Elle está num processo de aceitação de SEU desejo obscuro OU está lutando contra ele? Esta dicotomia na percepção do sentir da personagem torna a questão da representação, no filme, ainda mais rica. Há diversos momentos em que não fica clara a real posição da personagem em relação ao que sente quando apanha e é violada (já conhecendo a identidade do estuprador). Mas uma coisa é certa: ela – e somente ela – pode continuar no jogo ou acabar com ele.
Os pensamentos aqui estão soltos, são fruto da minha relação recente com o filme. Dia desses, deparei-me com muitas pessoas que julgaram o filme misógino. Para mim, ele é o oposto disso. As cartas em questão são complexas: um personagem feminino é tão senhor de si quanto mais difíceis forem as suas escolhas. Se é com a violência que Elle torna a sentir algo (qualquer coisa, qualquer sensação além da apatia) após tantos anos, quem – homem ou mulher – naquele universo é capaz de julgá-la? Ninguém. Because she’s the boss.
Em tempo, se é que já não ficou claro: que filmaço.
(para Luana Demange e Karen Akerman)
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