Ano VII

Sully e A Chegada

sexta-feira fev 24, 2017

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Dois filmes recentes e o cerne das obras

Em entrevista concedida a Jean Narboni, como preâmbulo à uma coletânea de textos seus, Éric Rohmer sintetiza a espinha dorsal de seus escritos da seguinte forma: o essencial do cinema reside na ontologia, não na linguagem. A fórmula aparentemente simples e assumidamente não original do ponto de vista teórico (Rohmer assume a evidente herança baziniana) pode, contudo, ser vista pelo ângulo que lhe confere uma autenticidade e uma importância ímpar, ou seja, ela pede para ser olhada pelo ponto de vista da crítica, também. Muito já se disse sobre o quanto a geração de críticos-cineastas formada nos Cahiers de capa amarela não diferenciava a atividade crítica da atividade de cineasta, sendo já um certo clichê, inclusive, afirmar que o que Godard fazia com as palavras, num texto dos anos 1950, por exemplo, já era um prelúdio do que viria a realizar nas décadas seguintes, com a câmera. Não só Godard, mas também Rivette e o próprio Rohmer seriam, portanto, muito mais críticos do próprio cinema, do que de um filme em específico.

Assim como o Rohmer teórico tardio (falamos de meados dos anos 1970), que procurou formalizar sua contribuição original nesse campo com uma tese de doutorado a respeito do espaço cinematográfico, tendo como base o Fausto (1926), de Murnau, a síntese acima mencionada nos diz bastante sobre seu olhar enquanto crítico e cineasta. Levando adiante o clichê do qual falávamos, é relativamente fácil identificar na obra do Rohmer cineasta uma certa predileção pelo realismo e, logo, atestar a validade, apesar dos pesares, de tal clichê. Igualmente, tomando como base seus escritos, não é nada complicado notar em seu gosto e predileção a herança da “revolução copernicana” empreendida por Bazin: até mesmo quando defende um cineasta como Hitchcock – alguém muito distante, portanto, do panteão usual eleito com base numa inclinação realista – recorre-se à vocação do diretor inglês em materializar coisas abstratas, dar uma dimensão palpável a certos elementos, em suma, dar uma dimensão real às ideias (como em sua crítica a Um corpo que cai).

Para além de tais ligações e teorizações já vastamente exploradas, o interesse do retorno à essa síntese de Rohmer reside, também, nessa inquietude do olhar crítico por ela suscitada: nem tanto a inteligência teórica que ordena a compreensão do espaço cinematográfico, mas a perspicácia do olhar crítico que fulmina o marasmo das certezas convencionais, atingindo o cerne da obra. Um pouco mais adiante, na mesma entrevista, afirma que ao nos determos exclusivamente nos aspectos de linguagem, perdemos o que há de mais essencial no filme, fazendo com que o raio de alcance de sua asserção vá muito além da informação acerca de suas predileções, gostos ou assumpção da herança baziniana. Esse ir além, na verdade, é também algo muito mais simples, muito mais essencial, repondo algumas perguntas muito básicas (porém ignoradas, desprezadas ou, no máximo, muito maltratadas na contemporaneidade): como ver um filme? Como se portar diante de uma obra que se desenvolve no espaço e no tempo? O que depreender dessa experiência? Diante desses questionamentos tão primordiais – até primordiais demais, alguém poderia dizer – e que não precisam dizer respeito somente aos “profissionais da profissão”, mas a qualquer pessoa que adentre uma sala de cinema e se ponha a acompanhar uma projeção, os estudos cinematográficos nas últimas décadas tentaram dar algumas respostas, se debatendo constantemente com questões que tangenciam a linguagem e a cognição. Quantos não são os exemplos que procuram esgotar um filme, explicitando o que ele quer nos dizer, através de procedimentos interpretativos que se atêm à pura e simples dissecação de seus elementos de linguagem (comenta-se a composição, a atuação, o momento do corte, a luz, o som, etc e se extrai uma conclusão do que o filme quer nos dizer com isso)?

Essa inquietude do olhar crítico sintetizada por Rohmer – tão fora de moda seja na academia, seja no que restou da crítica (quantos não são os casos de filmes analisados pelo viés do “Bela fotografia, belas atuações, excelente trilha, mas o filme em si deixa a desejar” – uma derivação “vulgar” da dissecção acadêmica – como se estivéssemos em uma apuração carnavalesca?) – ressurge com força ao assistirmos dois filmes recentes, que parecem situados em polos opostos no que diz respeito à forma como solicitam o envolvimento e a atenção do olhar do espectador: A Chegada, de Dennis Villeneuve; e Sully – O Herói do Rio Hudson, de Clint Eastwood. De um lado, uma solicitação que se dá pelos golpes de linguagem; do outro, um filme que nos escapa completamente caso o adentremos apenas a partir da dissecção de sua sintaxe, por assim dizer.

No filme de Villeneuve algo no mínimo curioso ocorre. Tudo é filmado como se a cada instante presenciássemos uma grande revelação, sempre sob o ponto de vista da protagonista, Amy Adams. Do primeiro plano do filme, passando pelo momento em que os jatos da força aérea rasgam o céu sob sua cabeça, até o clímax, no qual Adams finalmente se defronta com um os invasores, tudo é nivelado sob a égide de uma sublime revelação. Onde tudo é revelação, nada o é, e o serviço fica por conta do golpe de linguagem do qual falávamos: A Chegada é um filme calcado pura e simplesmente na retórica e isso lhe basta. Seu golpe de linguagem, sua “revelação definitiva” – supostamente ordenadora de todas as outras – procura emular, na forma de seu discurso, a mensagem que é confiada à protagonista. O comentário e sua nobre intenção ficam muito claros: vale a pena seguir uma narrativa cinematográfica mesmo que já se saiba o final (e tome réplica de uma sala de cinema dentro da nave espacial)? A resposta à essa pergunta retórica se dá sob o mesmo signo de esclarecida ingenuidade que investe o comentário geopolítico aqui arriscado (deixemos esse quesito de lado, aliás). Os planos e seus encadeamentos só são úteis enquanto repositórios e caixas de reverberação de uma inteligência autoindulgente (afinal, a narrativa vale muito a pena) que se quer fazer notar na base do berro. A pseudo-engenhosidade pode prevalecer por alguns segundos, reordenar as falsas revelações às quais tivemos acesso, mas o efeito consome a si mesmo e não há nada que permaneça desse castelo de cartas: A Chegada é um filme que pede para ser apreendido totalmente ao nível do seu golpe de linguagem, já que não há nada mais que possa permanecer.

Para início de conversa, Sully já se localizaria nas antípodas de A Chegada pelo simples fato de ser uma narrativa da qual já sabemos o desfecho. Sem golpes de retórica, sem crises acerca da narratividade para as quais só se colocam falsas perguntas. Nada disso lhe interessa. Tampouco lhe é cara a reconstituição cronologicamente fiel dos fatos. Nesse painel coletivo que nos é desenhado, o acidente retorna algumas vezes, sendo que em cada uma delas, aprofundamos mais a nossa percepção acerca de um detalhe, não como um interesse por minucias explicativas, mas como algo que reverbera a percepção acerca de um todo. Esse, por sua vez, nunca nos é dado num só golpe, mas sim através de uma mecânica narrativa movimentada a partir de um centro bem preciso. O centro desse todo é o Capitão Sullenberger (Tom Hanks) e a ordenação dessa mecânica se impõe a partir de dois pressupostos que são muito caros ao protagonista: o assombro pelo “e se” e a tensão/esperança suscitada na possibilidade aberta pelo “tempo”, sua chave de resolução para o problema no qual se encontra. O “e se” não se manifesta apenas nos momentos mais emblemáticos nos quais Sully é aterrorizado por visões infernais da queda do avião, mas é o que estrutura basicamente todo o drama do filme, cada ação, cada olhar, cada diálogo de Sully com os seus próximos – pelo menos até o desvelamento da problemática do “tempo”, que lhe vem após mais um flashback engendrado pelo “e se”, mudando completamente tanto a forma como o drama é conduzido, quanto a forma como o olhar é depositado naqueles detalhes. Tentar dissecar a intrincada dinâmica que rege o filme – a qual extrai o máximo do drama, a partir dos dois pressupostos extremamente básicos dos quais falamos (e é nesse sentido que podemos afirmar, de fato, que se trata de um dos filmes mais sintéticos do autor), – buscando apreende-la apenas pelo viés da linguagem, faz com que tudo o que há de mais importante no filme nos escape miseravelmente. Tudo aqui se passa nos entreatos, tal como tudo o que há de mais importante na história contemporânea da América vertida na filmografia recente de Clint Eastwood.

Guilherme Savioli 

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