Toni Erdmann
Toni Erdmann (2016), de Maren Ade
Rapidamente fica claro que Toni Erdmann não é apenas a história de uma reconciliação entre pai e filha. É também sobre dois alemães em trânsito pela Romênia: do “centro” da Europa à sua periferia econômica. Ines (Sandra Müller) trabalha numa firma de consultoria multinacional para a qual números complicados se traduzem numa realidade concreta: terceirização, demissões, otimização de custos. Ela serve aos interesses do capital. Mas sua estada em Bucareste não encarna apenas a presença do colonizador que exerce sua força sobre o colonizado, oprimindo-o: pois nesse processo é ela própria, Ines, que também se degrada ao jogar este jogo luxurioso e vulgar do capital. Porque o capital não se limita a exigir talentos profissionais. Ele exige também seu corpo (a unha encravada), seus dotes femininos (ciceronear as esposas de executivos em suas compras), sua rede afetiva (amigos e parceiros sexuais: todas relações insipidamente vulgares). O capitalismo não é um simples sistema econômico, é um modo de experimentar a vida, e a ele Ines havia se doado de corpo inteiro. Até que um dia chega seu pai.
A moral de Toni Erdmann é simples (não admira que um remake americano envolvendo Jack Nicholson já tenha sido anunciado): é preciso não se adequar, não se entregar cinicamente ao mundo, mas procurar subvertê-lo — no caso do personagem criado pelo pai de Ines, por meio do humor. Em sua essência, essa lição não era a mesma (embora aqui menos virulenta, menos radical, mais “fofa”) de Os Idiotas, de Lars Von Trier? O desajuste como forma de resistência não é o mote de uma infinidade de filmes, entre os quais boa parte da comédia americana independente atual? E como o filme de Maren Ade se diferencia disso tudo?
É que no fundo Toni Erdmann se filia a uma outra categoria do cinema contemporâneo: aquela centrada na monumentalização da insipidez cotidiana. Este autêntico gênero do “filme de autor” recente, embora universal, ganhou mais relevo nas últimas duas décadas em produções do leste europeu, em particular na Romênia, tendo num filme como Sieranevada sua caricatura congelada. À sua maneira, Maren Ade se filia a esse gênero, mas sem fetichizá-lo: não fetichiza o plano-sequência nem joga com o espectador, por exemplo. As duas horas e quarenta minutos, longe de criarem sufocamento, servem ao contrário para ventilar o espaço de convivência com os personagens. Nesse processo de monumentalização, pequenos gestos, personagens coadjuvantes e elementos pontuais ganham espaço e dão corpo à intenção maior do filme de mostrar os impasses na criação de uma Europa “comum”. Em seu retrato da Romênia, Ade nunca apela para uma chave caricatural e estreita, optando por espaços insipidamente banais, mas sempre vivos: um shopping, num campo de extração de petróleo, um apartamento suburbano onde comemora-se a Páscoa. Essa abertura do filme cria uma textura geral indeterminada, que não se dobra a um ponto de vista conceitual.
Mas o verdadeiro salto do filme está na abertura às performances dos atores. Sandra Hüller compõe uma personagem humana nos seus piores defeitos, doando-se ao filme como sua personagem ao trabalho, para tudo explodir no belo tour de force da gag da recepção nua. Peter Simonischek, por sua vez, irrompe sempre com um humor bizarro, ambíguo, disfuncional, sem alvo certo — razão pela qual dificilmente chegamos a gargalhar durante o filme. É com ele que o jogo “vira” e a insipidez cotidiana surge coberta como por uma capa mágica que nunca sabemos exatamente aonde vai nos levar.
Calac Nogueira
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