Friedkin: Ainda possuído
William Friedkin: ainda possuído.
Por Bruno Cursini
Especialista em cinema americano dos anos 1970, o francês Jean-Baptiste Thoret chega a afirmar que William Friedkin é, sem dúvida, um dos mais radicais cineastas americanos de todos os tempos. Mais: para ele, durante os anos de ouro da Nova Hollywood, Friedkin foi o único capaz de fazer frente à megalomania e à loucura de Francis Ford Coppola, o que, sabemos, é uma afirmação notável.
A comparação é acertada: Operação França, lançado em 1971, e O Poderoso Chefão, no ano seguinte, foram os vencedores do Oscar nas principais categorias, colocando seus jovens realizadores como figuras centrais daquele período. Após outros sucessos de crítica e público, ambos cineastas embarcaram em projetos no mínimo arriscados: fácil imaginar o quanto que as locações exóticas, bem distantes das largas avenidas de Los Angeles e dos executivos de estúdios que por ali circulam, contribuíram por fazer de seus orçamentos iniciais meros pontos de partida. Enquanto Apocalypse Now tornava-se imediatamente aclamado, recebendo a Palma de Ouro no festival de Cannes e gerando lucro, Comboio do Medo, a despeito de ser o mais belo filme de seu realizador, fracassava, significando um imenso retrocesso financeiro em relação a seu título anterior, O Exorcista.
As duas décadas seguintes viram altos e baixos em suas carreiras: se a de Coppola foi particularmente rica, quando não em grandes êxitos comercias, certamente em grandes filmes (O Fundo do Coração, Vidas Sem Rumo, O Selvagem da Motocicleta, Peggy Sue, Tucker, O Poderoso Chefão 3 e Drácula), a de Friedkin revelou-se incomparavelmente mais tímida, ora entregue a projetos televisivos, ora dirigindo filmes genéricos, sem grandes espaços para quaisquer radicalidades ou subversões.
Houveram exceções, claro, mas somente durante os anos 2000 algo parece mudar mais solidamente, possibilitando um novo paralelo entre as trajetórias destes cineastas. Mais uma vez separados por apenas um ano, Coppola, em 2007, volta após uma década de sumiço e dá partida a uma série de projetos abertamente pessoais, todos de uma vitalidade inegável; Friedkin, por sua vez, reencontra-se através de uma parceria com o dramaturgo Tracy Letts, adaptando suas peças e realizando seus melhores filmes desde A Árvore da Maldição (1990), ou, talvez, de Viver e Morrer em LA (1985), pois Killer Joe (2011) e Possuídos (2006) contêm toda a crueza, a brutalidade dos gestos e situações alucinantes que o levaram à fama e ao reconhecimento.
Para chegar aí, o diretor havia passado por Regras do Jogo, filme amplamente acusado, não sem razão, de reacionário, beligerante e islamofóbico (nada novo: há muito Friedkin carrega a reputação de direitista e prepotente). Oscilando entre um drama de tribunal e um filme de guerra, esta produção estrelada por Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones não conseguia nada muito além de mostrar boas sequências de ação e, sim, uma camaradagem viril entre seus protagonistas, algo já anacrônico àquele início de século em que os heróis infantilizados dos quadrinhos começavam a infestar as telas de cinema.
Pois foi centrando-se naquilo que o tornou mais notório que o cineasta construiu todo O Caçador, seu filme seguinte. Basicamente um grande jogo de gato e rato, seu início nos induz a pensar outra coisa, talvez em um estudo de personagens que perderam ou estão prestes a perder a sanidade, no caso, dois militares treinados para matar. A imagem inicial, com Benicio del Toro mal iluminado sob as trevas, faz referência ao Coronel Kurtz, de Apocalypse Now, mas o que a segue é somente uma sucessão de cenas de perseguição pelas florestas, estradas e cidades do Oregon – tendo Tommy Lee Jones correndo pra cima e pra baixo atrás de um procurado pela polícia, ficava a impressão de uma versão anabolizada para O Fugitivo, de Andrew Davis.
Apesar deste viés por demais simplista, já podíamos falar de uma iniciativa de realinhamento de seu cinema. Fraca, é verdade, pois sem o sentido de realidade plena contido em seus filmes mais importantes, lembrando que sua carreira começara com produções de documentários para a televisão. Daí uma hipótese: para além das bem coreografadas cenas de perseguições, não seria este apego à realidade o elo entre filmes tão diferentes quanto Parceiros da Noite e O Exorcista? A propósito deste, Friedkin diz-se encorajado por A Palavra, de Dreyer, assim despojando o sobrenatural dos ornamentos estilísticos típicos do gênero. E é esta a abordagem, partindo de um retrato direto a um desvario incontrolável, que será retomada em Possuídos.
Confinados em um quarto de motel à beira de estrada, Agnes (Ashley Judd) e Peter (Michael Shannon) começam um relacionamento que rapidamente se transformará em um terror esquizofrênico de uma angústia incomum, uma peça de câmara com essencialmente dois personagens em um único cenário claustrofóbico. É como se a paranoia política dos anos 1970 fosse reconfigurada aos anos 2000, ou melhor, ao meio dos anos 1990 (durante a primeira montagem da peça), explicitando a repressão e a moralidade sexuais retomadas nesta época em que os coquetéis anti-Aids apenas engatinhavam, enquanto os sistemas de controle e vigilância governamentais avançavam a passos largos.
Friedkin pesa esses ares paranóicos com uma brutalidade há muito reduzida em seu cinema, onde o ilusório irá aos poucos se materializar, ao menos nas mentes dos personagens. Acompanhando-os, nos tornamos cúmplices incrédulos e indefesos diante do crescente absurdo. Seu grande feito é evitar separar a realidade do delírio, e para isso Possuídos mantém um estilo quase documental, sem receio algum de ultrapassar o limite do tolerável ou do bom gosto, gerando uma histeria atordoante.
Ainda mais arriscado, Killer Joe parte dos filmes B, do cinema noir, para contar uma história de uma perversão moral absurda, implodindo com gosto aquele que talvez seja o mais intocável e difundido conceito do cinema hollywoodiano: o núcleo familiar. Sua premissa é impiedosa: imerso em dívidas, filho se junta ao pai para contratar os serviços de um matador de aluguel (detetive policial, em sua carteira de trabalho) para assassinar a mãe, consequentemente embolsando seu seguro de vida. Tamanha transgressão, diga-se, deve nos lembrar do quão paradoxal pode ser Friedkin: como poderia alguém tão supostamente conservador e retrógrado mirar contra justamente este sustentáculo de todo o pensamento reacionário?
Sintomático lembrar que no mesmo ano de seu lançamento, Coppola retornava, com Virgínia, à atmosfera gótica que tantas vezes lhe acompanhou e, como em Killer Joe, seu filme também se desenvolvia sob os princípios da farsa. Mais importante é evidenciar os extremos opostos a que eles chegarão, dizendo muito sobre as diferentes visões de mundo de seus realizadores: enquanto em Virgínia há um lirismo próximo ao de um conto de fadas (dos mais bonitos que vimos nos últimos anos), em Friedkin tudo é escrachado à maneira de uma versão doentia e sulista de um desenho da Looney Tunes.
A nós, cabe pensar o que representam esses últimos longas-metragens de dois dos maiores nomes da Nova Hollywood: Coppola e Friedkin foram agentes e testemunhas de muitas mudanças que ocorreram no cinema nas últimas quatro décadas e, agora, retornando ao que o diretor de A Conversação chamou de “filmes de estudantes”, voltam a reivindicar seus lugares como referências aos jovens cineastas – ou, ao menos, assim espera-se. A discussão, portanto, deve girar menos sobre a apreciação subjetiva a estes trabalhos e mais sobre a evidência que eles apontam: será sempre apressado considerar cartas fora do baralho aqueles que outrora as distribuíram.
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