Elle – Texto 2
Elle (2016), de Paul Verhoeven
É como um circuito: em Elle, violência herdada é violência passada adiante, que por sua vez retornará, inevitavelmente, contra si. Michèle (Isabelle Huppert) carrega uma herança maldita, mas não se afoga: ela apenas embruteceu o temperamento, tornou-se perfeita cold bitch, e encontrou uma forma de liberar e disseminar essa violência em jogos eletrônicos hediondos. Mas Michèle é apenas o centro de uma cadeia maior, que se estende por passado, presente, futuro, família, trabalho, amigos, vizinhança. O filme de Verhoeven é total. O cineasta é implacável em imprimir sua visão de mundo sobre cada personagem, cada fração daquele universo. Os personagens são menos indivíduos do que receptáculos, vasos comunicantes de uma cadeia animalesca que a religião pode bem querer salvar, mas diante da qual é reduzida a meros fantoches — bonecões de jardim, missas na TV: para Verhoeven, o mau gosto e vulgaridade burgueses são, em si mesmos, insalváveis.
Nesse circuito em que tudo se comunica, em que cada ação gera uma reação que se reverte e retorna em direção a si, neste ciclo bestial de onde todo humanismo se retirou, deixando em seu lugar apenas caricaturas vulgares (lembramos de Chabrol…), somente uma lei impera: a lei do mais forte. Michèle é a onipotência em pessoa. Todos os homens a seu redor (filho, ex-marido, empregados) têm qualquer coisa de patético, e ela exerce seu poder sobre eles de maneira contínua (vai até a nova namorada do ex-marido movida por ciúme, mas convida-a para um jantar natalino apenas para demonstrar seu controle e superioridade: para trazê-la para junto de si, para sua esfera de poder). Após o estupro no início, Verhoeven dispõe metodicamente uma sucessão de cenas que desconcertam pela imperturbabilidade da personagem. Mas não é que Michèle seja impassível, que ela não sinta nada: ela sente medo (o pesadelo do estupro retorna em sonho frequentemente), como sente ciúmes, mas aprendeu a viver num mundo onde a violência reina, onde a fraqueza precisa ser suplantada pelo cinismo. Cada cena do filme existe para reiterar sua força e onipotência: ela se arma, ataca o ex-marido no carro, humilha um funcionário rebelde… os exemplos são incontáveis. Sua apoteose será a festa final: todos os homens de sua vida (empregados, ex-marido, filho, amante e violador) reunidos no mesmo ambiente para celebrar seu triunfo profissional.
É então que chega o momento decisivo: em sua onipotência, Michèle supera até mesmo seu violador. Ela desmonta sua violência entregando-se a esta, numa espécie de onipotência passiva, extraindo prazer dela. Desespero dos comentadores. O filme enuncia, sem ambiguidade, uma verdade mais ou menos conhecida ou recalcada por todos: há prazer na dor. Que fazer? Não foi Freud quem se referiu ao masoquismo como um “problema econômico”? E, como se previsse o caos dessa afirmação, Verhoeven se apressa logo em fazer Michèle retomar sua consciência de classe e declarar a seu violador, palavra por palavra, sua recusa em continuar o jogo entre eles, no carro durante a volta da festa: “Não é apenas sobre mim. Há a sua mulher também. E talvez outras.”
Se Elle corre o risco de ser mal interpretado, é porque salta o terreno seguro do rame-rame social e da identificação humanista a que o espectador contemporâneo se acostumou: Verhoeven vai direto do instinto animalesco à psicanálise, da violência ao desejo. O “social” aqui, quando muito, se presta ao humor e à caricatura. Eis então porque Elle não poderia estar mais distante de um filme como Aquarius, a despeito de todas as semelhanças superficiais: o horizonte do filme de Kleber Mendonça Filho nada mais é do que, precisamente, este “social” (Brasil anos 2010, especulação imobiliária, paralisia da conciliação de classes) que o filme de Verhoeven ignora; a força e a onipotência de Sonia Braga se afirmam em signos francamente superficiais: tia cool que coleciona vinis e tem a audácia de chamar um garoto de programa (mas essa trepada, como foi? O que a personagem sentiu? Não sabemos, pois o filme não se interessa por isso); e um dos poucos momento em que o filme ganha alguma espessura é, justamente, aquele em que ele cede ao humanismo: na fragilidade de Sonia Braga no carro, quando o paquera percebe o seio ausente. Humanismo tocante, mas completamente fora do filme de Verhoeven.
A diferença entre os dois filmes é, portanto, elementar: diferença de visão de mundo, diferença de procedimento artístico. Em Elle, todo humanismo foi definitivamente varrido. Verhoeven reifica seus personagens para dar a ver uma face mais crua e mais dura do mundo — Showgirls também era regido por esta mesma lógica da reificação. Ele cria um circuito delirante de relações de força e poder atravessado de ponta a ponto por uma violência nua, exposta sem nenhum tipo de mediação — sem decifração sociológica, sem identificação humanista, sem chantagismo cultural (trilha sonora, discurso afinado com o da intelligentsia).
Calac Nogueira
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