Horizonte Profundo
Horizonte Profundo (Deepwater Horizon, 2016), de Peter Berg
A América está em chamas, ora, como não. Que melhor imagem então para servir de estandarte do que o plano da bandeira com as estrelas e as listras em meio ao fogo, na plataforma Deepwater Horizon? Mesmo que este novo filme de Peter Berg tenha pleno potencial para agradar eleitores de Trump e espectadores dos comerciais de camionetes nos intervalos das transmissões da Nascar – Tundras, Silverados e Heavy Duties se enfileiram no estacionamento do heliporto de Bristow, de onde os personagens voam até a plataforma-, o cinema republicano do diretor está ligado a uma tradição e um ideário bastante distintos daqueles que comandam o país hoje, seis anos depois dos acontecimentos reais reconstituídos no longa. A questão é que a analogia é muito boa para deixar passar: um imbecil businessman resolve cutucar um buraco que outros, mais sensatos, dizem ser perigoso. Teimoso como um detector de metais na porta do banco, o empresário resolve dar a ordem para prosseguir a perfuração e o resultado é uma tragédia de fogo, lama e petróleo.
O tema é antigo e eterno. Idiotas no poder, agindo de maneira ignóbil, são um dos grandes motivos recorrentes da humanidade. O que resta ao homem comum? Sobreviver. Os heróis de Berg quase sempre são sobreviventes que executam com ética e habilidade suas tarefas – como em Clint Eastwood; a diferença é que, para o diretor de Sully – O Heró do Rio Hudson o meio para se alcançar tal ética é mais mental do que braçal. Para dar corpo a esta ideia, Berg não filma apenas homens em ação, mas também ferramentas em ação. Poucos cineastas contemporâneos são tão interessados em pistões, hélices, manches, turbinas, mangueiras de abastecimento, válvulas de contenção e nas estruturas maiores que se valem dessas ferramentas: carros, helicópteros e a própria plataforma de extração de petróleo (Mark Wahlberg irrita-se, em dois momentos, quando mexem inadvertidamente em suas ferramentas de trabalho). Despedir-se da esposa, olha-la nos olhos, é tão importante quanto olharmos o helicóptero offshore, hélices formando uma mancha vermelha sobre o azul do oceano, seguir seu destino – não sem antes ter a parte frontal da cabine atingida por um pássaro, sinal de mau agouro e de que a natureza está sempre de prontidão para entrar em choque com o homem. Tão importante quanto ver um Skype com a cônjuge pouco depois de chegar à plataforma é ver o helicóptero pousando, em travelling circular – quantos cineastas gastam tantos segundos para mostrar um pouso de helicóptero? Entre Kim Novak e Kamov Ka-50 já sabemos o que o cineasta escolheria.
Sobreviver em meio a um espaço hostil é da índole do herói bergiano, mesmo que seja como mão de obra contratada ou, ainda, que a hostilidade tenha sido provocada pelos “poderosos” (no Afeganistão, como em O Grande Herói ou no Golfo do México). O gosto do diretor pelo concreto e pelo palpável ainda mais notável na violência da geografia pela qual desenrola-se a mise-en-scène: se no longa anterior vimos uma das mais brutais quedas e rolagens em barrancos do cinema, aqui presenciamos a violenta verticalidade de labaredas e jorros de lama e óleo, que atiram os personagens contra a parede e fazem do laranja uma cor onipresente a partir da metade de Horizonte Profundo. Uma vez inflamado o espaço, não há mais trégua. Só se pode lutar, não com esperança e sim com o saber. Para citar Rex Stout: “se uma pessoa guarda um barril de dinamite em casa, cedo ou tarde pode esperar algum barulho”. Os heróis bergianos carregam tampões de ouvido, sempre.
E quando já não sobram mais ferramentas? Quando se tornam inúteis, dadas as circunstâncias de perigo, ou foram consumidas pelo fogo? Aí o homem é capaz dos mais belos gestos, os mais puros, que só florescem em situações extremas: após a checagem feita pelo responsável pela segurança da Deepwater Horizon, já a bordo do navio de resgate e depois do silêncio que se segue a cada nome ausente, os homens se ajoelham e rezam. Ao fundo, o inferno em chamas. Ou, ainda, o singelo “obrigado” dito pela assustada personagem de Gina Rodriguez, depois de ter sido salva por Wahlberg. Rosto ferido, corpo desabado na escada, Wahlberg parece até mais fragilizado do que Gina, em pé. No plano e contra-plano, os personagens não se tocam, não choram, a música não sobe. Está tudo nos olhos dela e na pergunta trêmula “você tá bem?”, que quase não sai da boca dele, enquanto a respiração tenta se manter no lugar. Ao contrário do cinema humanista, muitas vezes embriagado pela própria bondade, o cinema republicano se resolve com bem menos do que um aperto de mão – e o plano/contraplano é uma espécie de aperto de mão do cinema, daquele cinema que lhe olha nos olhos.
Wellington Sari
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