Ano VII

Sully

sexta-feira fev 24, 2017

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Sully – O Herói do Rio Hudson (Sully, 2016), de Clint Eastwood

Um avião em ângulo descendente se aproximando de um prédio alto é uma imagem que jamais será esquecida, num pesadelo que, noite após noite, não importa quantas pálpebras se fechem, quantas persianas sejam cerradas, continua a se materializar em viva luminosidade. Sully – O Herói do Rio Hudson é um filme inteiramente situado no universo dos sonhos, apesar de recontar uma narrativa recente e bastante conhecida “que aconteceu de verdade”.

A estrutura não-linear do roteiro, que traz à tona as memórias recentes de um protagonista incrédulo, que vaga pela noite (com exceção das sequências que envolvem o pouso forçado no rio, há pouquíssimas cenas diurnas no longa), quase como um sonâmbulo que, obviamente, ignora a realidade (e toma buzinada de um simpático motorista nova-iorquino) é apenas a faceta mais evidente dessa vontade de Clint Eastwood em tratar não só do episódio heroico realizado pelo capitão Sullenberger, mas, principalmente, retratar o despertar de um pesadelo não mais com um sobressalto, como na primeira sequência ,e sim com sobriedade e paz.

O pesadelo é expurgado, como não poderia deixar de ser em se tratando de um homem do calibre de Eastwood, pela ética do trabalho. Não apenas Sully reluta em se admitir super-herói – aliás, é preciso condenar a infeliz escolha do subtítulo brasileiro -, como fica claro nas diversas conversas do personagem com a esposa, ou, ainda, no olhar de humildade com que Tom Hanks reage nos closes, ao ser elogiado ou abraçado por algum coadjuvante (Hanks é um dos maiores atores vivos quando se trata de cometer atos heroicos e manter postura serena; nada a ver com a arrogância daqueles que se mantém calmos por terem plena certeza de que realizariam determinada tarefa de maneira ou outra, por exemplo; trata-se da serenidade de quem só fez o que tinha de fazer, como no ato final de Náufrago, quando os olhos do ator parecem dizer “não sou herói, apenas sobrevivi”; Eis Hanks, o grande ator ético, porque transmite um dos valores máximos da essência do ser humano, que é a da manutenção da própria vida).

O que o comandante do voo 1549 da Airlines faz é, simplesmente, defender seu trabalho bem feito, pois é assim que se vence, de alguma maneira, a morte – e a morte, nesse filme, são os olhos fechados que enxergam a imagem do pesadelo que foi o 11 de setembro, imagem que atormenta Sully ao longo da narrativa, sempre que ele está dormindo, perambulando ou olhando através de uma grande janela retangular de um prédio, absorto em pensamentos. O longa de Eastwood começa a espantar os olhos fechados, os sobressaltos, a suadeira noturna, os vapores da madrugada quando, justamente, mostra homens e mulheres a trabalhar. Um pouco antes disso, durante os flashbacks que retratam diferentes fases poucas horas anteriores ao acidente, o que se vê é a construção de um sentimento de coletividade. Começamos a acompanhar os momentos que antecedem o embarque pelo ponto de vista dos pequenos personagens, com seus minúsculos dramas, quase como se saltassem das páginas de Gay Talese.  Quando Sully reporta a falha nas duas turbinas e a outra gama de cidadãos comuns surge na tela – comissárias de voo, controladores de voo, comandantes de balsa etc – Eastwood passa a imprimir ao filme um enorme senso de precisão e lucidez. Na cabine, em meio aos alertas em voz robótico da aeronave, Hanks não aumenta a voz em nenhum momento. Não há close de suor lhe escorrendo pela testa ou mãos em convulsão a segurar o manche. O co-piloto incorporado por Aaron Ackhart permanece igualmente calmo e as comissárias de voo dão ordens com a severidade de diretoras de orfanato de literatura do século XIX. O controlador que via o voo 1549 no radar só demonstra algum choque emocional quando acredita que o acidente tenha sido fatal, e que nada mais poderia fazer; mesmo assim, Eastwood faz um controlador substituto ficar de prontidão discretamente em segundo plano, antes mesmo do distúrbio do titular. Quando o avião começa a se aproximar da superfície do rio, não há gritos ou câmera na mão mostrando o desespero dos personagens e do piloto. Depois de tocar a água, equipes de resgate movimentam-se sem histeria musical na banda sonora.

Talvez um dos gestos mais belos do filme aconteça depois que todos os ocupantes do Airbus tenham sido seguramente evacuados do avião. Hanks, com água nas canelas, caminha pela fileira de poltronas, para se assegurar de que nenhum passageiro ou membro da tripulação tenha ficado para trás. Uma comissária avisa-lhe que deve sair do avião, antes que a água tome as saídas de emergência. O capitão assente e, calmamente, vai até a cabine apanhar o blazer do uniforme que havia ficado pendurado em sua cadeira de comandante. Depois de pegar a peça e segundos antes de sair de volta pela porta, Hanks dá uma última olhada na cabine. É uma olhadela decidida, viva, que supera a incredulidade inevitável – ele acabara de realizar o impossível, pousar um avião na água e preservar todas as almas a bordo – com algo de pragmatismo e, acima de tudo, apreço pelo equipamento. O gesto parece com a última olhada que se dá para a sala de casa antes de fechar a porta e partir para uma viagem longa. Atitude repetida uma ou duas vezes pelo Chris Kyle de Bradley Cooper em Sniper Americano, outra obra sobre ética do trabalho e olhos abertos (e amplificados pela “máquina”, que é sua espingarda de precisão) para vencer o mal.

Olhos abertos, serenidade, convicção: a escuridão cairá novamente, faz parte do relógio; o pesadelo, uma hora outra, será dormido de novo. No entanto, por um momento, ele será expurgado. “Hoje ninguém vai morrer”, como diz um dos membros da equipe de resgate. O cinema é sempre um momento de luz; que ele, então, como um grande criador de mitos, sirva para projetar a imagem da vitória em contraponto à imagem das trevas, que nunca mais será apagada. Para cada avião explodindo ao vivo na CNN ou nas reprises das grandes tragédias do século XXI, que haja outro na tela pousando de ponta cabeça ou em singela segurança no rio Hudson.

Wellington Sari

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Sully e A Chegada – Por Guilherme Savioli

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